Surrealismo político: para cumprir a Constituição, Lula, Jair Bolsonaro e o Congresso resolveram remendar o texto constitucional.
Assim, nasceu a 126ª emenda dos últimos 34 anos, a PEC da Transição.
Ela confirma, na prática, a perda do sentido de estabilidade e previsibilidade da Constituição, transformada em periódico.
Agora, tem-se uma reedição da Carta a cada três meses. Sempre em nome dos desafortunados.
A mudança desta semana, na justificativa de Lula, foi para “colocar os pobres no Orçamento”.
Há controvérsias. Alguns vislumbram por trás da nova emenda constitucional a astúcia de uma elite política empenhada em dissimular erros derivados da própria letargia.
No caso, completam-se dezenove anos de omissão do governo, do Senado e da Câmara.
Tudo começou às vésperas do Natal de 2003, quando parlamentares instituíram um programa nacional de renda básica com prioridade às famílias mais pobres.
A primeira etapa estava prevista para começar no ano seguinte. Ao governo coube “fixar o valor” com “estrita observância” à Lei de Responsabilidade Fiscal, em regulamentação a ser apresentada ao Congresso.
Na quinta-feira 8 de janeiro, Lula abriu o Palácio do Planalto para celebrar a sanção da “Lei Suplicy” — assim conhecida em homenagem ao autor, o então senador Eduardo Suplicy, do PT de São Paulo.
Presidente e senador se abraçaram diante dos convidados. Ouviram trechos de uma carta elogiosa do economista Celso Furtado, cuja obra mudou a percepção sobre como e por que o país se manteve subdesenvolvido. Lula autografou a lei com os ministros Antonio Palocci (Fazenda), Nelson Machado (Planejamento) e Ciro Gomes (Integração Nacional).
Avisou, no discurso, que não havia dinheiro suficiente: “Não faltarão aqueles que vão cobrar, já no mês que vem, a aplicação da lei”. Mas, admitiu, era bom começo: “Temos de trabalhar com a clareza de que essa lei faz parte de um processo da política social que nós queremos implementar no Brasil”.
No dia seguinte, sexta-feira 9 de janeiro, o Diário Oficial estampou outra lei (nº 10.836), que ele assinou com o chefe da Casa Civil, José Dirceu. Criaram o Bolsa Família.
“Para cumprir a Constituição, remendaram o texto da Carta”
Em apenas 48 horas, o Brasil fabricara dois programas para transferência de renda aos mais pobres. O do Congresso, decantado em década de debates, era abrangente e permanente — só faltava o governo regulamentá-lo. O outro ainda estava em discussão nos ministérios. Custaria menos porque restringiria o acesso às famílias pobres já cadastradas nos programas sociais. E, em tese, exigiria contrapartidas dos beneficiários.
O governo deixara o Fome Zero agonizante. Quando um dos coordenadores, Frei Betto, encontrou o chefe da Casa Civil, José Dirceu, cobrou: “Espero que em 2004 você me conceda ao menos uma audiência”. Naqueles dias, o Bolsa Família não passava de miragem.
Em reunião, a ministra de Políticas para Mulheres, Emília Fernandes, sugeriu impor o planejamento familiar como requisito de acesso. “É um problema que mulheres e homens continuem colocando crianças no mundo para morar nas ruas, debaixo de pontes” — argumentou. A coordenadora do Bolsa Família, Ana Fonseca, rebateu: “E como se opera essa condicionalidade? Não há modo de aferir…”.
Lá se foram dezenove anos. Desde aquele verão de 2004, quatro presidentes estiveram no Planalto. Aumentou a pobreza e, também, a concentração da renda — refletida nas sucessivas apropriações do Orçamento público. Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro não regulamentaram o programa de renda básica. E o Congresso nunca cobrou a omissão governamental.
No ano passado, o Supremo Tribunal Federal mandou acabar com a persistente “indiferença” do Executivo. Governo e Congresso responderam com aumento de 100 bilhões de reais no caixa da União, a partir de um “novo regime” de pagamento de dívidas judiciais (precatórios).
A pandemia estava sob controle, mas estenderam a “emergência econômica” ao ano de eleições gerais. Como justificativa, produziu-se a 114ª mudança na Constituição. Nela, além do calote nos precatórios, prevê-se uma “renda básica” aos pobres, em programa nacional, “observada a legislação fiscal e orçamentária”.
Nesta semana aprovou-se gasto extra de bilhões de reais, de novo, para “colocar o pobre no Orçamento”. Ninguém falou sobre renda básica permanente. A pobreza verde-amarela continua avançando — é o mais antigo e valorizado insumo da política nacional.
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Publicado em VEJA de 28 de dezembro de 2022, edição nº 2821