Numa noite de dezembro, quatro anos atrás, os 780 000 habitantes da Guiana ganharam o grande prêmio da loteria geológica: na véspera do Natal o petróleo começou a jorrar no mar em frente à capital Georgetown, na plataforma da ExxonMobil que flutuava a 120 quilômetros da costa.
Desde então, vivem numa espécie de encanto. Ano passado, a Guiana foi o país que mais cresceu no planeta: o Produto Interno Bruto aumentou 62%, informa o Fundo Monetário Internacional. E segue crescendo em velocidade, com expansão da economia neste ano estimada em 38%.
Sonhos de prosperidade e riqueza emergiram das noites “sem lua, sem nome” do “passado mais horrível, de pé nos quatro cantos de minha vida”, nos versos de León-Gontran Damas (1912-1978) para o ícone do jazz Louis Armstrong (1901-1971) sobre a opressão colonial europeia numa sociedade construída no sincretismo das culturas indígena, africana e indiana.
Quinze poços já abertos no pré-sal sugerem um surpreendente potencial de produção de combustível fóssil num dos países mais pobres da América do Sul, lindeiro do Brasil na Floresta Amazônica em 1 605 quilômetros de fronteira com Roraima.
Pelas contas do Banco Mundial, a Guiana tem reservas equivalentes a 10 250 barris de petróleo por habitante. É mais do que possuem os Emirados Árabes Unidos (10 100 barris per capita), a Arábia Saudita (8 100) e o incomodado vizinho do norte, a Venezuela (9 500).
A Venezuela é quase cinco vezes mais extensa que a Guiana, possui população 34 vezes maior e adormece em berço esplêndido das maiores reservas de petróleo e gás natural conhecidas no mundo. No entanto, a cleptocracia comandada por Nicolás Maduro mantém o país asfixiado na decadência política e econômica.
Em contraste, nos últimos quatro anos a Guiana triplicou o tamanho da economia. Quando dezembro acabar, o governo local terá fechado as contas com uma receita do petróleo (12 bilhões de dólares) equivalente à que a ditadura venezuelana prevê arrecadar em 2024.
“Maduro enredou Lula num jogo complicado com os EUA na Guiana”
Isso, claro, renovou a cobiça da cleptocracia de Caracas. Ela simplesmente fez evaporar um oceano de dinheiro (135 bilhões de dólares) originado na venda de petróleo e desviado do orçamento público para obscuros fundos paraestatais, via 781 “empreendimentos” sem prestação de contas — como constata a organização Transparência Internacional.
Maduro tem uma difícil reeleição pela frente, na hipótese de uma disputa real e limpa no próximo ano com a candidata liberal María Corina Machado. Foi ao limite na cooptação da maioria dos partidos de oposição. Agora, resolveu recorrer ao “inimigo externo”.
Ameaça invadir a Guiana para tomar-lhe dois terços do território, onde estão os depósitos de petróleo. Essa receita foi testada no início do século com relativo êxito nas eleições locais pelo falecido coronel Hugo Chávez. Maduro já contou ter o hábito de se inspirar em conversas matinais com Chávez, a quem vê “incorporado” em passarinhos sobrevoando os jardins do Palácio de Miraflores.
Nada estranho na paisagem do besteirol político latino-americano. Há quem converse com cachorros (Javier Milei); sugira carne de porco como aditivo no sexo (Cristina Kirchner); relacione alimentos transgênicos à calvície e à homossexualidade (Evo Morales); considere o coronavírus uma fantasia (Jair Bolsonaro); que Napoleão invadiu a China ou, ainda, que o mensalão e o petrolão não passam de invenção do imperialismo americano (Lula).
O problema, como sempre, é a realidade. Com a retórica belicista, Maduro conseguiu o improvável: induzir os Estados Unidos à intervenção direta na Amazônia, desenvolvendo na Guiana uma versão moderna de protetorado militar. A ExxonMobil animou-se a responder-lhe de forma direta, na semana passada: “Não vamos a lugar nenhum.”
Maduro foi além. Enredou Lula, um raro aliado, num jogo complicado. Na diplomacia, fomentou expectativa de “liderança do Brasil”, como repete Irfaan Ali, presidente guianês. Na política doméstica, porque o governo deseja extrair petróleo na Amazônia, mas receia a reação mundial. A ambição de Lula de turbinar seu mandato com a Petrobras produzindo óleo na bacia amazônica se esvai diante do compromisso global de precipitar o fim da era de combustíveis fósseis. Nesse caso, a Guiana passa a ser a última nova fronteira do petróleo na região.
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Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872