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Uvas amargas

O primitivismo empresarial azedou a safra gaúcha com o trabalho escravo

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h24 - Publicado em 3 mar 2023, 06h00

É época de vindima, de colheita nos parreirais do Vale dos Vinhedos. Trabalha-se pesado na apanha dos bagos, enquanto turistas desfrutam um roteiro de ritos seculares dos imigrantes italianos, como a “pisa” de uvas.

A safra deste verão azedou, e não foi por mudança climática, acidez do solo ou descontrole na maturação de viníferas chardonnay, pinot noir, riesling, labrusca e moscatel. Avinagrou por causa do primitivismo empresarial nas principais vinícolas, flagradas na manutenção de trabalho escravo em sua cadeia de produção.

Na semana passada, quando visitantes chegavam a Bento Gonçalves, a maior cidade do vale, duas centenas de trabalhadores agrícolas partiam em ônibus escoltados por policiais. Eram nordestinos, quase todos baianos, resgatados da servidão.

Estavam na empreitada de colheita na serra, recrutados por Pedro Augusto Oliveira de Santana, agenciador de mão de obra das três maiores vinícolas do país: Aurora, Salton e a Cooperativa Garibaldi. Na noite de Quarta-feira de Cinzas, três deles procuraram a polícia com o relato de uma fuga da exploração trabalhista com métodos similares aos de escravidão.

Em pouco tempo, o Ministério Público do Trabalho confirmou a detenção dos homens em acomodações degradantes por uma “dívida” permanente e crescente por comida — sempre acima do valor da remuneração — e submissão a uma rotina de repressão, que incluía tortura com choque elétrico. Santana, conhecido pela longa folha corrida de violações às leis trabalhistas, livrou-se da prisão pagando fiança de 27 salários mínimos, ou 36 000 reais.

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Em plena celebração da vindima, Bento Gonçalves mergulhou na voragem de um escândalo nas videiras plantadas em espaldeira às margens do Rio das Antas. Nele, parte da elite local se destaca acorrentada — por ação, omissão ou inépcia — num enredo de escravagismo moderno.

“O primitivismo empresarial azedou a safra gaúcha com o trabalho escravo”

Aurora, Salton e Garibaldi são estrelas da primeira região brasileira cujos vinhos e espumantes têm o selo de “Denominação de Origem”. Detêm mais da metade do mercado nacional e quase dois terços das exportações de vinhos, sucos e espumantes. Juntas, faturaram 1,5 bilhão de reais no ano passado, o triplo da receita da prefeitura de Bento Gonçalves.

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Beneficiárias da empreitada de trabalho temporário, as três vinícolas demoraram a reagir. Quando resolveram, preocuparam-se em demarcar equidistância em relação à escravatura nos seus domínios.

“As vítimas são funcionários da empresa que prestava serviços”, defendeu-se a Aurora em nota pública. “Trata-se de incidente isolado”, alegou a Salton, em meio a autoelogios como “referência” em sustentabilidade e direitos humanos. A Garibaldi justificou-se com o “desconhecimento da situação”, lembrando que “o contrato seguia todas as exigências contidas na legislação vigente”.

O Centro de Indústria e Comércio de Bento Gonçalves produziu uma pérola do preconceito ao tentar isentar as empresas. Numa lógica tortuosa, relacionou o trabalho escravo na região à falta de mão de obra e culpou o programa Bolsa Família pela escassez: “Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.

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Na vizinha Caxias do Sul, o vereador Sandro Fantinel sugeriu aos empresários dos vinhedos: “Não contratem mais aquela gente lá de cima (do Nordeste). Como a única cultura que ‘os baiano’ têm é viver na praia tocando o tambor, era normal que tivesse esse tipo de problema, ao contrário dos argentinos que são limpos, trabalhadores e corretos”.

As vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi começaram março banidas de exposições no exterior. A incivilidade na serra transformou a vindima numa colheita de perdas e danos imensuráveis para empresas, a vinicultura e a sociedade gaúcha, que já teve a terceira maior concentração de escravos do país — atrás do Rio de Janeiro e Espírito Santo e à frente de São Paulo, antes da Lei Áurea.

Bento Gonçalves atravessou o espelho do tempo, num retorno à normalização da escravidão. A antiga Colônia Dona Isabel dos imigrantes italianos foi rebatizada em homenagem a um dos heróis do Rio Grande do Sul. Líder do separatismo gaúcho, Bento foi um defensor da escravidão — como também eram os seus inimigos protetores do governo imperial, vitoriosos na Guerra dos Farrapos, conhecida como Revolução Farroupilha.

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Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831

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