Glória Maria, mulher de fé e de coragem
A jornalista era uma pessoa fora da curva com talento, competência e ambição; teve medo da discriminação, mas nunca deixou que ela determinasse seu destino
Tive a honra de conhecer e a grande felicidade de conviver e ter amizade próxima com Glória Maria. Sempre dizia a ela que era uma pessoa fora da curva de tamanho talento, competência, ambição e ousadia. Filha de alfaiate com dona de casa, Glória juntou o carinho pelo samba do Cacique de Ramos e da Vila Isabel e clarividência e amor pela leitura e estudos e o conhecimento. Da escola pública ao Curso Superior pago a duras penas, à pitada de sorte ao conseguir seu primeiro estágio no programa do Chacrinha quando se apresentava com um grupo de samba, e a oportunidade de demonstrar seu talento de jornalista na Rede Globo, foi o suficiente para ela abraçar a grande oportunidade e se transformar na mais completa, talentosa, brilhante e fabulosa jornalista do nosso país.
Nossa Pelé de saias foi onde poucos jornalistas jamais chegarão e anunciou notícias, informações e vivenciou experiencias que poucos seres humanos terão a oportunidade e possibilidade de realizarem. Muitos povos conhecem e reconhecem Glória sem ao menos saber indicar onde fica o Brasil no mapa. Andou da periferia do centro, viveu e conviveu com os seus da simples Vila Isabel de tantas outras partes do país e foi acolhida e amada pela elite endinheirada.
Realizou sonho de princesa vivendo e conhecendo castelos, reis e rainhas e viveu sua plenitude de mulher ao escolher a dedo cada um dos seus amores, até mesmo José Roberto Marinho, o dono da sua própria emissora. E depois realizou o sonho de mulher e mãe adotando duas meninas negras.
Pôs o dedo na cara de general em plena ditadura e foi a primeira vítima de racismo a denunciar e exigir punição exemplar do seu algoz, que havia dito que negros não podiam pela porta da frente no hotel que administrava. Teve medo da discriminação, mas nunca deixou que ela determinasse seu destino.
Viveu, sonhou, amou, sorriu e emprestou seu exemplo de vida para que todos os demais jovens, sobretudo as meninas negras, mantivessem acesa a chama da vitória cada vez que ligassem a televisão e a vissem no horário nobre, nos mais diferentes programas e nos distintos lugares com sua extrema competência e o extraordinário talento sua profissão de fé. Todo negro enchia o peito de orgulho e de autoestima nessas noites. Fez tudo, sem negar e combater suas origens e sua condição de mulher e sem deixar de vivenciar tudo que o resultado do seu trabalho e talento pode lhe propiciar.
Na Universidade Zumbi dos Palmares foi diva e rainha. Na primeira vez que recebeu o Troféu Raça Negra em 2009, confessou que estava super feliz porque nunca havia recebido uma premiação de negros ou de brancos, e que, por isso, aquela noite jamais ia sair da sua memória. E, quando recebeu o segundo, reclamou que havia tantas outras jornalistas negras brasileiras que mereciam mais ou tanto quanto ela aquela premiação.
Sua generosidade permitiu que contribuísse com doações financeiras indispensáveis para colocar de pé o sonho da primeira universidade negra do país. Depois, como patronesse da segunda turma de formandos da Universidade Zumbi dos Palmares, se colocou à disposição para ajudar cada um deles conseguir seus primeiros empregos e inscreveu no coração dos presentes suas sábias, potentes e encorajadoras palavras; “O racismo não pode determinar seu destino. Nunca desistam dos seus sonhos, enfrentem tudo que se colocar na sua frente. Ninguém pode determinar a vocês o que e como fazer cada passo da sua jornada. Estudem, estudem e estudem, porque somente a educação salvará as suas e as nossas vidas. Nunca, jamais abandonem a educação suas e dos seus familiares. Acreditem na força dos seus sonhos e tenham a ambição e a coragem de domarem o universo. Foi assim que eu fiz, foi assim que cheguei até aqui”. Viva Glória, Mulher de fé e de coragem.