Apesar do risco de câncer, adesão à vacina do HPV por jovens ainda é baixa
Entenda os desafios desse cenário e os impactos na sociedade; apenas 1,5% da população entre 15 e 19 anos foi vacinada na última campanha nacional
Apesar de existir uma vacina segura, eficaz e gratuita para o HPV, capaz de prevenir até 70% dos casos de câncer de colo do útero, apenas 1,5% da população entre 15 e 19 anos foi vacinada na última campanha nacional. O contraste entre a disponibilidade da imunização e a baixa adesão revela um desafio de saúde pública no Brasil.
O câncer de colo do útero — também chamado de câncer cervical — é o oitavo mais comum no mundo e o quarto entre as mulheres, segundo o World Cancer Research Fund. Quase todos os casos estão relacionados ao papilomavírus humano (HPV). Segundo uma meta-análise publicada no The Lancet Global, em 2023, homens também são diretamente afetados: globalmente, um em cada três está infectado com algum tipo do vírus, e cerca de 21% carregam variantes de alto risco. A vacinação, portanto, precisa abranger meninos e meninas para proteger indivíduos e reduzir a circulação do HPV na sociedade.
A adolescência é um momento-chave para a imunização. A resposta imunológica à vacina é mais forte até os 15 anos e idealmente a vacinação para HPV deve ser realizada antes do início da vida sexual. Imunizar adolescentes garante maior eficácia contra os tipos mais perigosos do HPV, como o 16 (responsável por cerca de metade dos casos de câncer de colo do útero) e o 18 (associado a cerca de 20% dos casos), responsáveis por 70% dos casos de câncer de colo do útero. Segundo a OMS, vacinar meninas pode evitar até 17,4 mortes a cada mil adolescentes imunizadas.
Embora o câncer de colo do útero afete exclusivamente mulheres, meninos são transmissores silenciosos do HPV e podem desenvolver câncer de garganta, ânus e pênis. No Brasil, a vacinação pelo SUS contempla meninos e meninas de 9 a 14 anos, com taxas de cobertura acima de 82% para meninas e acima de 67% para meninos na primeira dose, segundo dados de 2024. Países como Austrália e Ruanda, que incluíram meninos em campanhas amplas, já observam redução na circulação do vírus e maior proteção coletiva.
Aqui surge um descompasso relevante, que levantei no início deste texto: enquanto a cobertura vacinal entre meninas de 9 a 14 anos já atinge 82,83% — próxima da meta da OMS de 90% até 2030 — a imunização entre jovens de 15 a 19 anos despenca para apenas 1,5%. Ou seja, o Brasil tem bons resultados no público-alvo prioritário, mas a baixa imunização dessa faixa etária, justamente a mais próxima de iniciar a vida sexual, é um ponto de atenção.
A Estratégia Global da OMS para a Eliminação do Câncer de Colo do Útero prevê até 2030: 90% das meninas vacinadas até os 15 anos, 70% das mulheres rastreadas aos 35 e 45 anos, e 90% das diagnosticadas em estágio inicial devidamente tratadas5. O Brasil, no entanto, está distante desses objetivos, e a baixa imunização dessa faixa etária representa um ponto de atenção dentro dos esforços nacionais. Os impactos da vacinação insuficiente já podem ser sentidos:
- Em curto prazo, adolescentes desprotegidos enfrentam maior risco de verrugas genitais e lesões pré-cancerosas , mantendo alta a prevalência do vírus em jovens adultos
- Em médio prazo, cresce a pressão sobre o SUS com tratamentos oncológicos caros e complexos, especialmente para mulheres de baixa renda, que têm menos acesso a exames preventivos
- Em longo prazo, a meta da OMS de eliminar o câncer de colo do útero até 2030 estará comprometida, com projeção de até 410 mil mortes anuais no mundo até o fim da década
O Setembro em Flor, mês dedicado à conscientização sobre o câncer de colo do útero, pode ser ampliado para reforçar a vacinação para o HPV. Para isso, campanhas precisam ser atualizadas: devem falar a linguagem dos adolescentes, utilizar escolas, redes sociais e plataformas digitais, além de engajar pais e responsáveis.
É verdade que adultos não vacinados na adolescência ainda podem buscar a imunização, mesmo fora da faixa etária prioritária do SUS, na rede privada ou campanhas públicas específicas. Mas essa alternativa não resolve a questão estrutural, já que transfere a responsabilidade individual para o bolso do cidadão, ampliando desigualdades.
Exemplos internacionais mostram que é possível: Ruanda, com mais de 90% de cobertura entre meninas, já apresenta resultados concretos. O Brasil também tem progressos a mostrar, mas se não superar a baixa imunização dessa faixa etária, corre o risco de transformar um avanço promissor em uma oportunidade perdida.
*Maria Isabel de Moraes-Pinto é médica infectologista e coordenadora de vacinas da Dasa