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De ‘The Last of Us’ para a vida real: mudanças climáticas e superfungos

Ascensão de microrganismos com aumento das temperaturas e maior resistência a tratamentos impõem medidas coordenadas e urgentes

Por João Nóbrega de Almeida Junior e André Mario Doi*
13 jun 2025, 11h00

Com o sucesso de obras como a série de TV The Last of Us, é inevitável a pergunta: seria possível um fungo transformar humanos em zumbis controlados? A resposta curta é: não. Fungos do gênero Cordyceps, de fato, infectam insetos e manipulam seu comportamento, mas não crescem em temperaturas acima de 30 °C – o corpo humano é quente demais para eles.

Contudo, o aquecimento global pode favorecer o surgimento de fungos capazes de superar essa barreira térmica. Casos de Candida auris e outras infecções emergentes mostram que a linha entre a ficção científica e a realidade pode, sim, tornar-se mais tênue com o tempo.

No Brasil, onde o calor tropical sempre moldou a ecologia de microrganismos, um inimigo invisível se prepara para cruzar novas fronteiras: o fungo Aspergillus. Até pouco tempo atrás, seu impacto era mais concentrado em regiões quentes e úmidas. Agora, com as mudanças climáticas redesenhando o mapa ecológico do país, o avanço desse patógeno rumo ao Sul e Sudeste é uma ameaça concreta.

O Aspergillus – gênero que inclui espécies como A. fumigatus, A. flavus e A. niger – é um fungo oportunista, geralmente inofensivo para indivíduos saudáveis, mas potencialmente letal em pessoas imunossuprimidas.

Com a elevação das temperaturas, alterações nos padrões de umidade e de chuvas, essas espécies encontram condições ideais de proliferação em áreas antes inóspitas. O resultado? Hospitais, fazendas, obras civis e até residências podem se tornar palco de infecções fúngicas mais frequentes, resistentes e difíceis de tratar.

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Com o aumento da distribuição geográfica do Aspergillus, o Brasil pode testemunhar um crescimento significativo de casos de aspergilose invasiva – uma infecção grave, muitas vezes fatal, especialmente entre pacientes transplantados, oncológicos ou com covid-19. Também há risco de agravamento de doenças respiratórias crônicas, como a aspergilose broncopulmonar alérgica (ABPA) e sinusites fúngicas, que afetam milhares de brasileiros, muitas vezes sem diagnóstico adequado.

Profissionais que atuam em ambientes com alta carga de esporos – como agricultores, trabalhadores da construção civil e veterinários – estão em risco constante. E os animais não escapam: aves, cães e bovinos podem desenvolver formas graves da doença, com repercussões econômicas e sanitárias. Outro perigo é a contaminação de alimentos. Espécies como A. flavus produzem aflatoxinas, substâncias altamente tóxicas e carcinogênicas. Isso exige não apenas vigilância sanitária rigorosa, mas também maior controle sobre o uso de antifúngicos ambientais.

Se o avanço territorial do Aspergillus já preocupa, a resistência aos medicamentos eleva o problema a outro patamar. No Brasil, o uso indiscriminado de antifúngicos da classe dos azóis — tanto na medicina quanto na agricultura — tem favorecido o surgimento de cepas resistentes. Isso significa que tratamentos-padrão com itraconazol, voriconazol ou posaconazol podem falhar, exigindo drogas mais caras e com maior toxicidade, como a anfotericina B lipossomal.

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Essa resistência ambiental é particularmente perigosa porque se desenvolve fora dos hospitais, em lavouras e solos tratados com fungicidas. Quando uma cepa resistente atinge um ser humano, a resposta médica se torna uma corrida contra o tempo – muitas vezes, perdida.

Diante dessa nova realidade, os laboratórios clínicos brasileiros precisam se adaptar. O fortalecimento da capacidade diagnóstica é essencial. Testes rápidos como a detecção de galactomanana, PCR e MALDI-TOF, além de culturas e identificação molecular, devem ser amplamente adotados. Também é urgente a criação de bancos de dados nacionais com cepas de Aspergillus e seus perfis de resistência, permitindo um mapeamento contínuo e integrado da situação micológica no país. Para isso, a capacitação permanente de microbiologistas clínicos deve ser uma prioridade.

A mitigação começa com a prevenção. Ambientes hospitalares devem investir em monitoramento ambiental rigoroso, isolamento de pacientes vulneráveis e controle adequado de obras e sistemas de ventilação. No campo, a regulamentação do uso de fungicidas azólicos pode ser decisiva para conter a resistência cruzada.

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Campanhas educativas voltadas a profissionais da saúde, agricultores e à população em geral são fundamentais para o reconhecimento precoce dos riscos e a adoção de medidas protetivas. Além disso, a inclusão do Aspergillus nos sistemas de vigilância nacional de doenças fúngicas invasivas é uma medida sensata e de alto impacto.

Modelos preditivos baseados em dados climáticos e microbiológicos podem ser desenvolvidos para antecipar surtos e alocar recursos de forma estratégica. A integração entre ciência, clínica e política pública é a chave para controlar a expansão fúngica. E, embora o “fungo zumbi” continue sendo apenas ficção, os riscos reais associados ao Aspergillus são mais do que suficientes para justificar uma resposta nacional coordenada.

A saúde humana, animal e ambiental está profundamente interligada – e os fungos, silenciosamente, estão nos mostrando isso.

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* João Nóbrega de Almeida Junior é infectologista e patologista clinico, membro da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML); André Mario Doi é patologista clinico e diretor científico da SBPC/ML

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