Repleto de ressalvas e controvérsias, o uso dos opioides está aquém de seu potencial para o tratamento das dores crônicas no Brasil. Essa classe de analgésicos potentes ganhou evidência com notícias do uso indiscriminado e incorreto, especialmente nos Estados Unidos, mas, quando bem indicada, é uma ferramenta médica importante no manejo da dor. A prescrição adequada pode fazer com que pacientes que convivem com dores incapacitantes há décadas voltem a sentir o impulso de viver.
Embora as vendas de opioides tenham aumentado quase seis vezes no Brasil entre 2009 e 2015, segundo um estudo publicado no American Journal of Public Health, esse tratamento ainda é pouco usado por aqui quando comparado a outros países.
Um estudo divulgado em 2022 no The Lancet, uma das principais revistas científicas do mundo, mostrou que o consumo médio de opioides por indivíduo é maior em países com alto nível de desenvolvimento humano, como Canadá, Suíça e Alemanha. O consumo do brasileiro é equivalente a um décimo das nações desenvolvidas.
Isso quer dizer que a prática clínica não privilegia a prescrição dessas substâncias, e é preciso identificar as razões para essa barreira. Se por um lado existe uma questão de segurança pública, trazida principalmente a partir das ondas de epidemia dos opioides dos Estados Unidos e que já impactam o Brasil, e o risco de dependência e da tolerância ao medicamento, por outro temos uma falta de preparo na abordagem dos médicos para tratamento da dor, pouco empenho dos profissionais para conhecer os mecanismos desses medicamentos e informações limitadas à disposição dos pacientes.
Tratamentos com opiodes não são indicados para qualquer paciente, nem mesmo entre aqueles com dores crônicas. O tratamento seguro da dor é multidisciplinar, que incorpora terapias não medicamentosas, como fisioterapia, psicoterapia, acupuntura e técnicas de relaxamento, com o monitoramento constante dos pacientes a fim de levar a resultados positivos e reduzir a necessidade de analgésicos mais potentes e doses elevadas dos fármacos. Quanto mais estratégias para o manejo da dor, melhor.
A preocupação em relação à dependência e ao abuso é real, mas não deve limitar a prescrição dos medicamentos e o acesso dos pacientes que realmente necessitam dessa droga para o controle eficaz da dor. Antes de recorrer a essa alternativa, um paciente que sofre com dor crônica, fibromialgia, anemia falciforme ou até mesmo a dor oncológica, por exemplo, experimentou inúmeras outras medicações e não teve uma resposta satisfatória. Nesse contexto, ao proporcionar alívio, os opioides permitem que os pacientes desfrutem de uma melhor funcionalidade e qualidade de vida.
Atualmente, existem também outros tipos de tratamentos avançados na medicina que já estão disponíveis no Brasil, como a cirurgia de neuroestimulação, que envolve a implantação de dispositivos que enviam impulsos elétricos ao sistema nervoso para reduzir a percepção da dor. Se bem indicado, esse tipo de procedimento pode devolver a qualidade de vida ao paciente.
Para vencer a subutilização dessas substâncias para o tratamento da dor crônica, há de se quebrar, ainda, mais um tabu, instalado entre os pacientes. A ideia do brasileiro resiliente e lutador está enraizada em nossa cultura – o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e o filme Central do Brasil, de Walter Salles, exploram essa característica. Nesse sentido, apresentar sinais de vulnerabilidade leva à estigmatização.
Tal constituição gera relutância em procurar assistência à saúde e a aceitar o uso de medicamentos ou tratamentos capazes de controlar a dor. Afinal, ninguém quer ser lembrado como “fraco” ou “doente”.
Ao longo da história da medicina, ainda é recente a ideia de que toda dor deve ser mitigada, e que o socorro ao paciente com dores crônicas pode ter origem em uma planta conhecida há mais de 5 mil anos. Os opioides estão em evidência e precisamos assegurar que eles sejam integrados, com responsabilidade e ciência, aos cuidados necessários a uma vida digna e livre de sofrimento.
* Marcelo Valadares é neurocirurgião e pesquisador da Disciplina de Neurocirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)