Em fevereiro de 2007, no Centro Nazionale Trapianti, localizado na Itália, três pacientes receberam transplantes de uma doadora HIV positivo que faleceu de hemorragia cerebral e cuja família não conhecia a soropositividade.
A investigação revelou erro na transcrição do resultado do exame sorológico positivo. Exames adicionais rotineiros realizados em seguida constataram a falha. A demora na comunicação dos resultados foi considerada violação aos protocolos nacionais e regionais, que previam alerta imediato de todo o sistema de transplantes.
O incidente sem precedentes nos 40 anos de história de transplante de órgãos da Itália foi causado por um erro humano e violação de procedimentos e diretrizes. Medidas corretivas recomendadas à época pelo Ministério da Saúde italiano incluíram a dupla checagem para confirmação dos resultados de testes de marcadores virais, bem como a conectividade entre equipamentos analíticos e sistemas de informação laboratorial com transmissão dos dados sem a interferência humana.
A recente ocorrência no Rio de Janeiro, que resultou na infecção de seis transplantados pelo vírus HIV, ainda está sendo avaliada pelas autoridades sanitárias e policiais, mas depoimentos revelados pela imprensa apontam para descumprimento de normativas regulatórias somadas a falhas humanas.
Hoje, os laboratórios clínicos brasileiros dispõem dos mesmos equipamentos analíticos automatizados e reagentes utilizados em países de primeiro mundo, possibilitando a análise simultânea e mais rápida de amostras de centenas de pacientes, e garantindo maior qualidade e precisão nos resultados. Porém, isso de nada vale se não forem respeitadas as boas práticas laboratoriais.
A utilização de Programas de Controle de Qualidade (PCQ) são ferramentas há muito reconhecidas para assegurar a qualidade da fase analítica do processo laboratorial, estando disponíveis no Brasil desde a década de 1970. São recomendados em normativas internacionais e tornados de utilização obrigatória pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2005.
Os erros laboratoriais são eventos bem estudados e discutidos na literatura internacional. Ao longo das últimas décadas, falhas originadas na fase analítica tiveram sua proporção drasticamente reduzida. O diagnóstico representa momento crítico do cuidado, no qual a correta e oportuna identificação de uma condição de saúde é o primeiro passo para garantir que ela seja tratada ou gerenciada adequadamente.
Segundo a Academia de Ciências norte-americana, a maioria das pessoas experimentará pelo menos um erro de diagnóstico em sua vida, às vezes resultando em danos graves.
Com a chegada do movimento da qualidade ao setor de saúde brasileiro, ao final da década de 1990, foi lançado pela Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial o Programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos (PALC) com definição de padrões técnicos que possibilitam avaliar a competência técnica dos laboratórios. Tais programas, que em outros países são de participação compulsória, ainda são de participação voluntária em nosso país. A infecção de transplantados no Rio acende um alerta sobre a importância da acreditação.
Para obtenção do selo de acreditação, os laboratórios são auditados periodicamente por profissionais com formação na ciência laboratorial e comprovada experiência, de modo a verificarem a conformidade com os padrões técnicos definidos, o que inclui a participação efetiva em PCQ.
O selo serve de orientação a pacientes, médicos e gestores para avaliar a capacidade técnica dos laboratórios. Pacientes que recorrem ao Sistema Único de Saúde (SUS) teriam mais segurança, caso a acreditação fosse considerada pré-requisito para a contratação de serviços laboratoriais.
* Wilson Shcolnik é médico patologista, membro do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) e diretor da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML)