Os olhos realmente podem ser uma janela, mas para o cérebro
Médicos contam como avanços em exames oculares permitirão antecipar o diagnóstico de condições como Alzheimer, Parkinson e esclerose múltipla

Desde os antigos poetas até os filósofos modernos, os olhos sempre foram considerados as janelas para a alma. Mas e se eles fossem mais do que isso? E se, na realidade, também fossem uma janela para o nosso cérebro?
O que antes parecia apenas uma metáfora motivou descobertas científicas fascinantes. Hoje, exames oculares estão desvendando mais do que apenas nossa visão: podem revelar segredos do cérebro humano e de doenças que se instalam ali.
A retina, uma camada fina e sensível na parte de trás do olho, não é apenas um órgão sensorial; ela é uma extensão direta do cérebro. Compartilhando a mesma origem embrionária e características fisiológicas que a conectam ao sistema nervoso central, esse tecido funciona como um “espelho” do que ocorre no cérebro.
Com tecnologias avançadas, como a tomografia de coerência óptica (OCT), OCT com angiografia (OCTA) e o retinal function imager (RFI), médicos e cientistas já conseguem avaliar a saúde cerebral de maneira não invasiva, por meio de simples exames oculares sem utilizar contraste na veia.
Surpreendentemente, as mudanças na retina podem indicar sinais precoces de doenças neurológicas graves. No caso do Alzheimer e da esclerose múltipla, por exemplo, é possível observar alterações na vasculatura e na perfusão da retina, bem como mudanças da espessura das camadas de fibras nervosas e células ganglionares da região por meio de técnicas de imagem como OCT e OCTA.
O mais impressionante é que algumas dessas alterações podem ser detectadas antes mesmo que os sintomas clínicos se tornem evidentes. Além disso, estudos indicam que os depósitos de amiloide, um dos principais marcadores do Alzheimer, podem ser observados na retina, com sua quantidade aumentando à medida que a doença avança. Isso abre um enorme potencial para o diagnóstico precoce e o monitoramento contínuo da condição.
No caso do Parkinson, a tecnologia ocular também pode revelar a diminuição da espessura da camada de fibras nervosas no olho, um alerta silencioso da progressão da doença. Outra abordagem promissora é o eye-tracking (rastreamento ocular), que analisa os movimentos dos olhos para identificar mudanças sutis no comportamento visual.
Com o apoio de inteligência artificial (IA) e deep learning, estamos aprendendo a “ensinar” as máquinas a identificar esses padrões anormais, o que permite detectar os primeiros sinais de Parkinson de forma precoce e até antecipar sua evolução.
À medida que a ciência avança, os exames oculares estão se consolidando como aliados poderosos no diagnóstico e monitoramento de doenças neurológicas. Contudo, apesar das promessas empolgantes, ainda existem desafios significativos a serem enfrentados para a implementação desses métodos em larga escala na prática clínica, como o alto custo, a necessidade de treinamento especializado e o processamento complexo dos dados obtidos.
Porém, o futuro está mais próximo do que imaginamos: em um cenário não tão distante, exames regulares de retina podem se tornar parte do check-up médico, possibilitando o monitoramento contínuo da saúde cerebral e tratamentos cada vez mais personalizados. Quem sabe o próximo grande avanço já não esteja, literalmente, ao alcance dos nossos olhos?
* Gustavo Rosa Gameiro é oftalmologista e pesquisador, doutor pela Unifesp e membro da Academia Nacional de Medicina; Giovana Rosa Gameiro é médica e doutoranda em oftalmologia pela Unifesp