A venda isenta de prescrição de medicamentos é uma realidade. Apesar de pensarmos que condições corriqueiras, como dores de cabeça, podem ser curadas de forma autônoma, ao fazer disso um hábito, podemos mascarar sintomas, agravar condições que poderiam ser diagnosticadas e tratadas em momento oportuno por um médico, além de trazer agravos a saúde, como úlcera péptica ou insuficiências renal e hepática. Por isso, a automedicação contribui para as estimativas de erros presentes em alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS).
De acordo com dados de 2017 da entidade, o custo mundial associado a erros com medicamentos circundava os 42 bilhões de dólares por
ano e 1,3 milhão de pessoas eram atingidas anualmente. Em virtude deste cenário, o terceiro desafio global da OMS foi reduzir pela metade as falhas de medicação, buscando envolver pacientes, familiares, profissionais, sistemas de saúde e indústrias farmacêuticas nesta mobilização.
Um importante ponto de preocupação neste cenário se dá com os antimicrobianos, sobretudo com o grupo dos antibióticos. Estas drogas revolucionaram a medicina moderna, permitindo a cura de diversas doenças infecciosas anteriormente progressivas e muitas vezes fatais.
A disponibilidade destes medicamentos permitiu ainda o desenvolvimento de especialidades como terapia intensiva e oncologia, nas quais os tratamentos invasivos podem se complicar com infecções diversas. Por estas razões, os antimicrobianos passaram a representar um dos principais fatores para o aumento da expectativa de vida.
Não obstante, frequentemente seu uso é feito de forma irracional, ou seja, não respeitando indicação, dose e tempo apropriados para o tratamento. Diferente de outras drogas, o uso inadequado de antibióticos tem consequências que vão além do nível individual: há impacto coletivo por meio da resistência antimicrobiana, que ocorre quando os microrganismos deixam de responder aos medicamentos.
Dessa forma, a resistência antimicrobiana representa uma ameaça à saúde pública global por impactar negativamente na assistência à saúde. Isso porque, diante de microrganismos resistentes, as opções de tratamento ficam reduzidas, o que leva a um aumento da morbidade, da mortalidade e dos custos hospitalares.
Apesar disso, é comum que os efeitos da resistência sejam vistos, até por profissionais da saúde, como um problema distante. Entretanto, os números comprovam que os impactos no dia a dia já são observados de forma ampla. Segundo um estudo publicado em 2022 na revista The Lancet, as infecções por microrganismos resistentes a antimicrobianos causaram cerca de 4,95 milhões de óbitos no mundo no ano de 2019. Em longo prazo, as perspectivas só pioram.
Um estudo inglês de 2014 apontou que, na ausência de ações imediatas e organizadas, estima-se que cerca de 10 milhões de mortes ocorrerão
anualmente em todo mundo em decorrência da resistência antimicrobiana a partir de 2050. O número é maior do que os óbitos por câncer ou acidentes de trânsito, por exemplo.
Diante desta crise, em 2015, a OMS estabeleceu um Plano Global de enfrentamento à resistência antimicrobiana que se baseia no conceito de Saúde Única, com visão multidisciplinar incluindo medicina humana e veterinária, agricultura, setor financeiro, impacto ambiental e consumidores mais bem informados.
Enfrentar a resistência antimicrobiana e promover o uso consciente de medicamentos em geral são desafios e demandam políticas públicas locais e
globais complexas. O uso de informações baseadas em evidências para a tomada de decisão mais assertiva pelos profissionais da saúde, assim como a transparência, participação ativa de pacientes, compartilhamento e decisão conjunta a respeito dos riscos e benefícios das terapias são fundamentais para garantir tratamentos mais conscientes e seguros.
* Filipe Piastrelli é infectologista e coordenador do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
* Alessandra Pineda do Amaral Gurgel, farmacêutica e gerente de Assistência Farmacêutica do Hospital Alemão Oswaldo Cruz