Ozzy e a ‘resistência’ a drogas: um enigma que a genética ajuda a explicar
Especialista discute como resiliência a substâncias como opioides, usadas pelo roqueiro Ozzy Osbourne, é hoje encarada pela ciência

A maneira como diferentes pessoas reagem ao uso de drogas como opioides, tanto do ponto de vista de resposta inicial como da adaptação ao uso prolongado — alguns desenvolvendo dependência ou risco de overdose, outros demonstrando uma tolerância impressionante —, ainda intriga a ciência e desafia a medicina.
Essa variabilidade individual, resultado da interação complexa entre genética e ambiente, fica clara em casos como o do cantor Ozzy Osbourne, e exemplifica como descobertas genéticas em personalidades que despertam grande interesse público podem ganhar destaque na mídia antes de serem completamente elucidadas.
Um estudo recente da empresa americana Knome Inc., que sequenciou o DNA do músico, identificou mutações genéticas que podem ajudar a explicar sua resistência ao uso prolongado de entorpecentes. No entanto, os pesquisadores destacam que fatores ambientais e comportamentais também desempenham um papel essencial nessa resposta complexa.
Estamos em plena virada de paradigma: a medicina personalizada está aos poucos, mas em uma curva ascendente, substituindo o modelo tradicional, em que todos recebem o mesmo tratamento, pela análise individualizada de fatores genéticos e ambientais. Essa mudança é fundamental para o manejo dos opioides, já que o que é seguro e eficaz para uma pessoa pode ser perigoso para outra, exigindo cada vez mais decisões baseadas no perfil genético e no contexto individual do paciente.
Genética como mapa individual
O avanço da farmacogenética também permitiu identificar variações genéticas que influenciam a forma como metabolizamos medicamentos. Uma revisão publicada no Biomedicine & Pharmacotherapy, que analisou variantes genéticas relacionadas à farmacocinética e farmacodinâmica de opioides entre janeiro de 2000 e dezembro de 2020, destacou genes como CYP2D6 e OPRM1 por influenciarem perfis metabólicos distintos, que vão desde metabolizadores lentos até ultrarrápidos.
Essa diferenciação genética individualiza a resposta ao tratamento e evidencia a fragilidade de análises generalizadas baseadas em biomarcadores únicos ou pouco específicos. Aplicar parâmetros genéricos à população pode levar a tratamentos inadequados, aumentando riscos de ineficácia ou efeitos adversos.
Por exemplo, no uso de opioides como codeína, morfina e tramadol, um metabolizador ultrarrápido pode converter rapidamente a codeína em morfina, elevando o risco de toxicidade, enquanto um metabolizador menos ativo pode apresentar efeito analgésico insuficiente.
Em se tratando de opioides, a farmacogenética é a base fundamental para uma abordagem personalizada do tratamento. Testes genéticos tornam-se ferramentas valiosas ao possibilitar que médicos ajustem doses ou escolham medicamentos de acordo com o perfil individual de metabolização de cada paciente. Contudo, é importante lembrar que os genes não contam toda a história.
Adaptação: a resposta do corpo à repetição
Com o uso contínuo de entorpecentes, o corpo passa a se adaptar, desenvolvendo tolerância. Isso ocorre por meio de diversas alterações no organismo, como a diminuição da expressão e sensibilidade dos receptores de opioides (conhecida como downregulation e perda na ação efetora do receptor), além da reorganização de vias neurais, que inclui alterações na plasticidade sináptica e na atividade neuronal em regiões corticais específicas.
Esses processos, que representam uma resposta adaptativa à exposição crônica a opioides, são influenciados pela frequência, dose e duração do uso, bem como por aspectos psicossociais, conforme detalhado pela Universidade de São Paulo em seu estudo sobre tolerância e dependência aos opioides. Dessa forma, um indivíduo pode desenvolver tolerância mesmo sem predisposição genética, ressaltando a importância do comportamento repetitivo na resposta ao medicamento.
Prescrever com base no perfil: um imperativo ético
Frente a essas variabilidades genéticas e comportamentais, a farmacogenética surge como uma grande aliada para tornar a prescrição mais segura. Testes já oferecidos no país analisam dezenas de genes com influência na resposta a mais de 200 medicamentos. Eles permitem que médicos personalizem o tratamento desde a primeira consulta, reduzindo riscos e melhorando os resultados.
Identificar se um paciente metaboliza opioides de forma lenta ou rápida — ou se possui variantes no gene OPRM1 que influenciam a resposta a medicamentos como a morfina² — pode contribuir para decisões mais assertivas no tratamento. Genes como o CYP2D6 já têm aplicação clínica consolidada, e outros, como OPRM1, COMT e ABCB1, estão sendo cada vez mais investigados, ampliando as possibilidades de uma medicina personalizada mais segura e eficaz.
O caso de Ozzy Osbourne ilustra a complexidade do tema discutido neste artigo. Sua “resistência” é frequentemente interpretada como um superpoder genético — mas a ciência mostra que, mais do que apenas mutações raras, o que molda essa resposta é a combinação entre predisposição genética e adaptação fisiológica ao longo do tempo. A genética é um fator importante — mas quem conta a história completa é a união entre as nossas predisposições e as nossas escolhas junto ao ambiente que estamos inseridos.
* Guilherme Yamamoto é geneticista e líder de inovação genômica e bioinformática da Dasa Genômica