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Letra de Médico

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A genética preditiva está chegando e logo cada pessoa poderá descobrir quais são os riscos de saúde aos quais podem estar sujeitas no futuro

Por Salmo Raskin
5 set 2018, 13h17

Predizer o futuro sempre esteve na imaginação do ser humano, com um misto de fascinação e medo. Mas precognição, premonição, profecia, são termos que nunca foram bem aceitos pela Ciência. A Ciência sabe de longa data que é mais fácil prevenir do que remediar. Mas como prevenir-se de algo que não sabemos se vai acontecer?

Nos últimos 20 anos, com os avanços vindos do conhecimento do Genoma Humano, a Genética tem transformado a Medicina de curativa em preventiva. A capacidade de predizer as chances de que uma pessoa tem risco elevado de ter certas doenças veio primeiro em relação a doenças mais raras, como a Doença de Huntington, um raro distúrbio hereditário que altera a capacidade de controlar os movimentos do corpo, seguido de demência. De forma surpreendente e até hoje não bem compreendida, pessoas que tem esta alteração genética em todas as suas células nove meses antes de nascer, vão manifestar sintomas, em geral, só na quarta ou quinta década de vida.

Outra condição rara, a Doença Renal Policística do Adulto, tem um comportamento semelhante; o surgimento de vários cistos nos rins pode se manifestar tardiamente, levando muitas vezes a falência dos rins e a necessidade de diálises e transplantes renais entre a sexta e a oitava décadas de vida.

Apesar de que há mais de 20 anos estão disponíveis testes genéticos para determinar se uma pessoa saudável carrega uma forma alterada dos genes que levam a estas doenças, para nenhuma delas existe tratamento que comprovadamente possa postergar o aparecimento dos sinais ou até impedir que as doenças se desenvolvam. Mesmo com esta grande limitação, parentes de pessoas com estas e outras doenças genéticas muitas vezes querem saber se carregam a forma normal ou a forma alterada destes genes. As razões para esta curiosidade podem variar desde o interesse em planejar de forma mais realista a vida, definir se vão ter filhos ou não, até a utilização de técnicas de reprodução assistida para evitar a transmissão destas mutações para futuras gerações.

A genética já pode prever o risco de uma pessoa vir a ter certos tipos de câncer quando há histórico familial

O risco de desenvolver certos tipos de câncer tem uma relação muito forte com o fato de a pessoa ter herdado uma alteração genética de seus ancestrais. O exemplo mais conhecido é a predisposição hereditária ao câncer de mama e ovário, que estimulou milhões de pessoas, entre elas a atriz Angelina Jolie, a fazer um teste genético para saber quais eram seus riscos. Nestes casos, ter uma mutação pode significar um risco cerca de 6 a 7 vezes maior do que a população geral de vir a manifestar um câncer, e levando em conta o fato de que o risco de qualquer mulher desenvolver câncer da mama se viver até a sétima ou oitava década de vida é de cerca de 10%, 6-7 vezes mais se transforma em um número que impressiona e preocupa muito.

Mesmo nestas situações de alto risco, por motivos que a Medicina ainda desconhece, cerca de 30% a 40% das pessoas que carregam uma mutação nestes genes podem passar uma vida toda sem desenvolver o câncer de Mama ou de ovário, protegidas por algum fator genético ou ambiental. E este fato se soma a outros que tornam a decisão de fazer ou não tais testes genéticos preditivos uma tarefa não tão simples.

Que atitudes tomar frente a um resultado demonstrando uma predisposição hereditária ao câncer? Tomar atitudes preventivas simples, mas que reduzem pouco o risco, ou atitudes mais radicais que reduzem muito o risco? Seria adequado tomar uma atitude simples, não-invasiva, se o risco de ter o câncer é grande? Seria adequado tomar uma atitude radical se nem é garantido que um dia vá ter o câncer? Mas aqui cabe chamar a atenção de que já existem várias alternativas para reduzir o risco de vir a ter estes cânceres ou diagnosticá-los precocemente com o que a Medicina já dispõe. Ao contrário, no grupo de doenças que se encontram a Doença de Huntington e a Doença Renal Policística do Adulto, não há, por enquanto, alternativas terapêuticas que possam beneficiar aqueles que tenham certeza que estão em elevado risco, pelo teste genético realizado. 

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Testes preditivos em pessoas sem histórico familial

Todas as situações acima descritas se referem a pessoas que tem familiares com estas doenças, e por isto, com diferentes intensidades, se preocupam em vir a ter a mesma doença dos parentes. Porém, com o brutal avanço na capacidade de analisar o DNA de maneira mais eficiente, rápida e menos cara, nos últimos anos uma nova modalidade de Teste Genético Preditivo vem sendo cada vez mais cogitada. Com a possibilidade de analisar o código genético para tentar obter informações preditivas sobre a saúde de pessoas que sequer tenham conhecimento de parentes afetados por alguma doença com componente genético.

Nos últimos quatro meses, estas promessas do Projeto Genoma Humano, que até então ainda eram ficção científica, começaram a decolar em direção a uma realidade próxima. Em maio de 2018, em artigo publicado na revista Nature Review Genetics, pesquisadores norte americanos do “The Scripps Research Institute” demonstraram que já são capazes de, ao investigar variantes em um conjunto de genes de uma pessoa, predizer através de um escore genético, quem está em risco maior ou menor de desenvolver doenças muito frequentes e graves, como Diabetes mellitus tipo 2, Alzheimer, câncer de Mama e de próstata, assim como de doença arterial coronariana.

Estes testes já chegam ao ponto de poder predizer com razoável segurança a idade na qual a pessoa vai iniciar a demonstrar sinais da doença, os benefícios que modificações no estilo de vida podem proporcionar a quem tem estes riscos genéticos, e o impacto de cuidados médicos baseados nestes testes, além de demonstrar quais intervenções e rastreamentos são prioritárias. Em um outro artigo científico publicado há poucos dias (agosto de 2018), na Nature Genetics, pesquisadores do Broad Institute do MIT e Harvard, Massachusetts General Hospital e Harvard Medical School, ampliaram o mesmo tipo de análise para incluir testes genéticos poligênicos não só para diabetes, câncer de mama e doença arterial coronariana, mas também arritmias cardíacas e doença inflamatória intestinal.

Doença coronariana

Os pesquisadores analisaram milhões de variantes no DNA de 40 mil indivíduos do UK Biobank, uma enorme base de dados com informações médicas e genéticas de pessoas de origem britânica. Para se ter uma ideia do potencial destes escores, no que se refere a doença arterial coronariana, os pesquisadores demonstraram que 8% das pessoas analisadas tinham mais de três vezes o risco de desenvolver a doença do que qualquer outra pessoa do banco, e que só 0.8% dos indivíduos que foram classificados como baixo risco tinham doença arterial coronariana, comparado com 11% dos indivíduos que o teste genético demonstrou alto risco.

Outro dado importante é que estes indivíduos cujo teste genético apontou alto risco, nunca tinham apresentado nenhum outro sinal de risco para doença coronariana, como hipertensão arterial ou colesterol elevado. São pessoas que sem o teste genético, nunca saberiam estar em risco de ter doença arterial coronariana, mesmo que fossem regularmente as consultas médicas. O teste pode ser aplicado muitos anos antes de uma pessoa em alto risco ter as consequências de lesões ateroscleróticas.

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Leucemia

Em julho de 2018, dois artigos publicados na prestigiosa revista Nature mostraram que é possível através de um exame de sangue, analisando meia dúzia de genes, em especial os genes TP53, IDH1 e IDH2, predizer o risco de uma pessoa ter uma forma rara de Leucemia, a Leucemia Mielóide Aguda, quase uma década antes do aparecimento dos sinais da doença. A incidência deste tipo de leucemia aumenta com a idade e a mortalidade é superior a 90% quando diagnosticada depois dos 65 anos de idade. A maioria dos casos aparece sem nenhum sintoma detectado previamente e a doença geralmente já se manifesta de uma forma grave com falência da medula óssea.

Estes dois estudos mostraram que é possível detectar quem está em risco de ter este tipo de câncer, ainda em estágio pré-maligno. Os próximos passos são melhorar o teste para que ele seja mais sensível e mais específico, e, claro, tentar desenvolver estratégias para que detectado o alto risco de câncer, este possa ser prevenido.

Antecipando o futuro

Aproxima-se velozmente o dia em que com um exame genético vamos poder antecipar nosso futuro de saúde e doença. Por um lado estes novos exames vão num futuro próximo permitir o diagnóstico mais precoce de doenças, e reduzir drasticamente os investimentos em saúde estratificando e apontando quem está em maior e em menor risco de desenvolvê-las, permitindo melhores estratégias de investimento em saúde pública, fazendo com que possamos viver mais e melhor, prevenindo mais, remediando menos.

Por outro lado, a chegada destas novas ferramentas preditivas trará novos dilemas éticos: quais grupos poderiam e quais deveriam ser testados? Com quais objetivos? Quem terá acesso a estas tecnologias? Trará esta nova modalidade de testes genéticos estigmatização e preconceito aos que tiverem elevado risco genético? Serão estes testes utilizados para fins menos nobres, como por exemplo estratificar entre aqueles com maior potencial de inteligência daqueles com menos? As pessoas e a sociedade em geral estão preparadas para compreender que “risco elevado” não é sinônimo de “vai ter a doença” e que “risco baixo” não é sinônimo de “não vai ter a doença”? Será que a informação de que um indivíduo tem um alto risco genético para desenvolver diabetes ou doença arterial coronariana será realmente um forte impulso para que ele adote estilo de vida mais saudável?

Do ponto de vista científico, será que os riscos estimados para a população de europeus e seus descendentes terão o mesmo valor para outras populações? Será que os países menos desenvolvidos alocarão recursos para produzir suas próprias bases de dados genéticos de suas populações? Será que a população vai compreender a diferença entre testes preditivos com embasamento científico como os acima apresentados nos recentes artigos publicados nas melhores revistas científicas internacionais, em comparação com testes sem embasamento científico, como os já comercialmente oferecidos para determinar a “dieta ideal”, o “atleta ideal”, entre outros?

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Para que estes testes preditivos possam finalmente se tornar ferramentas úteis na prática médica, ainda há necessidade de se avançar um pouco mais na compreensão do componente genético das doenças mais comuns, pois apesar dos avanços colossais, apenas uma parte do risco genético destas doenças já pode ser explicado. A tecnologia já nos permite analisar centenas de pontos do material genético em um único exame de sangue, porém a análise simultânea de ~80 pontos do genoma explicam só ~20% do componente genético da Doença Arterial Coronariana, ~100 pontos explicam ~20% da genética do diabetes tipo 2, ~150 pontos explicam ~20% do componente genético do câncer de mama, ~100 pontos explicam ~33% do componente genético para câncer de Próstata e ~20 pontos genéticos explicam ~30% do componente genético da doença de Alzheimer.

Além disto, estes dados precisam ser validados em outras populações, como por exemplo, a brasileira. Mas de um fato não há mais dúvida: estes avanços, em especial os ocorridos nos últimos quatro meses, não tem mais retorno. Em muito breve esses testes terão utilidade clínica e farão uma revolução na vida das pessoas que a eles tiverem acesso. A complexidade do contexto desses testes, não só as questões técnicas mas também suas implicações médicas, éticas, legais e sociais, deixam claro a crescente importância e a responsabilidade do geneticista, e como o Aconselhamento Genético se tornará parte cada vez mais integrante e imprescindível  da rotina de cuidados de saúde.

 

    Salmo Raskin

     

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