Entidades criticam ‘jabuti’ de Gilmar Mendes em debate do marco temporal
Manifesto aponta inclusão da autorização de mineração em Terras Indígenas do anteprojeto; grupo também se queixa de tempo exíguo para analisar minuta

Entidades de defesa dos direitos dos povos indígenas se manifestaram, nesta terça-feira, 18, contra a minuta de um anteprojeto de Lei Complementar proposto pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da discussão acerca do marco temporal.
A crítica principal do manifesto, assinado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e mais de sessenta outras entidades, se deve ao que o movimento tem classificado como um “jabuti” no texto do ministro, ou seja, um tema inserido na proposta que é alheio ao assunto principal. Trata-se da autorização da mineração em Terras Indígenas, as chamadas TIs.
O documento foi apresentado por Gilmar Mendes na última sexta-feira, 14, e se deu no contexto dos debates que ocorrem há mais de um ano no STF sobre a tese do marco temporal. Na segunda, 17, foi realizada uma das últimas sessões da mesa de conciliação instaurada no Supremo para debater o tema. A audiência começou na parte da manhã e durou até a noite, por falta de consenso, e até troca de acusações entre parlamentares indígenas (Leia ao final). A próxima sessão está marcada para a próxima segunda-feira, 24.
Os principais pontos de divergência, além da mineração em terras indígenas, se deram em torno de eventuais indenizações e a própria tese do marco temporal.
Segundo o manifesto assinado pelas entidades, a liberação da mineração em TIs é fruto de “manobras do Centrão” — o Progressistas, por exemplo, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade requerendo que o Supremo criasse dispositivos relativos à pesquisa e à lavra mineral — e do “lobby do setor mineral”. Um dos supostos conflitos de interesse citados pelo grupo é o fato de que algumas das propostas incorporadas à minuta de Gilmar Mendes foram feitas por um advogado que representa o PP na mesa de conciliação e que também atua para uma mineradora.
As entidades também se queixam do curto espaço de tempo para analisar o texto proposto por Mendes. “Gilmar Mendes encampou de tal forma o discurso a favor da mineração em TIs que, em uma proposta que deveria ser sobre a ‘Tese do Marco Temporal’, aproximadamente um terço dos artigos estão vinculados à regulamentação da mineração”, dizem.
“O texto foi apresentado em uma sexta-feira para ter sua discussão iniciada às 9h da segunda-feira seguinte. Além de não criar condições para um diálogo com as entidades de representação dos Povos Indígenas (…), o cronograma imposto restringiu significativamente o tempo para que elas pudessem analisar o documento”, afirmam.
A minuta e o marco temporal
Em 2023,o Supremo considerou inconstitucional o marco temporal, tese que determina que povos indígenas só têm direito a terras que ocupavam na promulgação da Constituição, em 1988. Dias depois, o Senado aprovou uma lei contrária, reconhecendo e criando o marco temporal. O projeto chegou a ser vetado pelo presidente Lula, mas o veto foi derrubado pelo Congresso.
A partir de então, foram apresentadas diferentes ações diretas de inconstitucionalidade contra a nova lei. Gilmar Mendes decidiu suspender os processos judiciais em abril de 2024 — quando foi criada a câmara de conciliação, que conta com a participação de parlamentares e representantes da sociedade civil.
De acordo com as entidades de direitos indígenas, apesar de a minuta apresentada por Mendes na última semana refutar a tese do marco temporal — que já era o posicionamento da Corte –, o texto faz “uma série de concessões ao agronegócio e ao setor mineral”, o que, afirmam, “poderão inviabilizar a demarcação de novas TIs no futuro”.
Um dos exemplos citados é o artigo 6º da minuta, que afirma que se a demarcação for “contrária ao interesse público”, ela poderá ser rejeitada pelo ministro de Justiça e Segurança Pública, sendo também prevista a possibilidade da transferência dos indígenas para outras áreas.
Já no artigo 21, o documento decide que a “exploração de recursos minerais estratégicos” constituiria atividade de “interesse público”. “Considerando que a Resolução 02/2021 do Comitê Interministerial de Análise de Projetos de Minerais Estratégicos estabelece critérios muito amplos para definir o que são minerais estratégicos, incluindo qualquer minério que seja exportado, como ferro, ouro ou bauxita, a norma abre a possibilidade que o fato de existirem pedidos de pesquisa mineral em determinada área seja estabelecido como de ‘interesse público’ e assim, sirva como argumento para impedir a demarcação, mesmo após os estudos e laudos técnicos elaborados pela Funai”, diz o manifesto.
Direito de fala
Durante a audiência de conciliação para debater uma proposta de texto elaborada pelo ministro Gilmar Mendes, lideranças indígenas discutiram pelo direito ao “lugar de fala” na discussão sobre o Marco Temporal.
O desentendimento começou quando a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) foi impedida de sentar-se à mesa da sessão, mesmo tendo participado de reuniões realizadas anteriormente pelo colegiado. A justificativa dos auxiliares do STF foi a de que Xakriabá figura como suplente na Câmara. A deputada, no entanto, afirmou que, mesmo sendo suplente, solicitou a titularidade por ter comparecido a 12 das 16 reuniões.
A deputada Silvia Waiãpi, por outro lado, participou pela primeira vez da reunião, em substituição ao deputado Lúcio Mosquini (MDB-RO), que representava a Câmara na comissão. A troca foi solicitada pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), na última semana.
Apesar de ter sido barrada da mesa, Xakriabá pode fazer uso da palavra. Ela classificou a manobra como “colonial, patriarcal, violenta e anti-civilizatória”.
“A senhora é a única pessoa que vota publicamente a favor do Marco Temporal”, disse, dirigindo-se a Waiãpi. “Essa é uma estratégia, porque poderiam colocar qualquer um, mas não. O Congresso Nacional quis usar a senhora como figura simbólica de ser uma mulher indígena para contrapor o voto de violência (…) Estamos em pleno século 21, e uma mulher indígena vai votar contra o direito do seu próprio povo (…) Isso é uma velha arma colonial de estatégia”, afirmou.
A declaração foi rebatida pela colega parlamentar, que afirmou que não estava sendo “usada” por lideranças políticas. “Este lugar aqui não é, como a senhora disse, usado. Eu não estou sendo usada, até porque, assim como a senhora, eu estudei. Assim como a senhora, eu também tenho lugar de fala. Assim como a senhora, também tenho uma formação e intelecto o suficiente para não ser usada”, disse Silvia Waiãpi.