Entre janeiro e março de 2024, o Ministério dos Direitos Humanos recebeu mais de 47 000 denúncias de negligência familiar, mais de 70% do total de queixas registradas nos seis meses anteriores. No momento em que a política nacional se encontra dominada pelo debate sobre o aborto, a disparada dos casos traz à tona a importância da atenção às crianças e adolescentes que sofrem abusos em casa e dos programas de desenvolvimento de habilidades parentais para prevenir violações de direitos.
O termo “negligência familiar” é um guarda-chuva que abrange diversos comportamentos relacionados ao descaso, irresponsabilidade ou violência dos pais praticados em relação aos filhos. Entre as denúncias enviadas ao governo pelo Disque 100, os casos variam desde a falta de diálogo no ambiente familiar até a deficiência de cuidados médicos, uso de punições físicas na educação e, em situações extremas, agressão e tortura — um dos relatos acusa um pai de punir atos de desobediência do filho apagando cigarros em sua pele.
“É importante ter atenção aos cuidados infantis sem criar uma estigmatização das famílias que praticam negligência”, avalia Rodolfo Canônico, diretor-executivo da ONG Family Talks. Ele explica que, com frequência, os abusos são decorrentes da falta de condições econômicas dos pais para prover alimentação e saúde de qualidade — também é comum que pais e mães criados sob modelos de punição física repitam as atitudes com os próprios filhos. “Existe um ciclo de replicação da violência familiar que não pode ser ignorado”, diz.
Consequências e estratégias de prevenção
Na última quarta-feira, 19, a Family Talks e outras organizações da sociedade civil participaram de um seminário na Câmara dos Deputados sobre boas práticas de educação familiar. Durante o evento, foram apresentados estudos que relacionam a falta de cuidados adequados aos filhos, particularmente na primeira infância (período entre zero e seis anos de idade), à propensão mais elevada à evasão escolar, abuso de álcool e drogas, conflitos com a lei e dificuldade de aprendizado.
Segundo Canônico, as estratégias públicas mais eficientes para prevenir a negligência familiar são amplos programas de formação de pais e mães nas diretrizes da “parentalidade positiva” — que incluem apoio emocional e diálogo com os filhos, acompanhamento próximo das rotinas e atividades fora da escola e formas de educação lúdica sem uso de violência física.
Alguns exemplos citados como bem-sucedidos são as iniciativas do governo do Ceará, desde 2015, e da prefeitura de Osasco (SP), no ano passado, de reuniões entre responsáveis e profissionais de assistência social para implementar do método internacional ACT de educação parental. “No Brasil, ainda se foca muito na denúncia e punição, que são essenciais após a ocorrência das violações, mas falta incentivo à prevenção dos abusos”, avalia o diretor da Family Talks.