STF julga se Google pode ser obrigado a revelar buscas de qualquer usuário
Empresa contesta ordem para identificar todos os brasileiros que pesquisaram o nome de Marielle Franco nos dias anteriores ao assassinato

O Supremo Tribunal Federal voltou a discutir se a Justiça pode quebrar o sigilo de buscas no Google por usuários indeterminados, isto é, que não sejam formalmente citados em investigações criminais. O julgamento foi retomado nesta quarta-feira, 23.
Na prática, o que está em jogo é a validade das ordens judiciais para quebra de sigilo telemático — incluindo histórico de buscas na web, sites acessados e mensagens trocadas — de um vasto grupo de usuários, a fim de cruzar com outros elementos da investigação para identificar a atividade de suspeitos específicos na internet. Desta forma, pessoas que não têm qualquer relação com o crime investigado poderiam sofrer a violação de dados pessoais e privados pelas autoridades.
“Pela tese em discussão, alguém que faça uma pesquisa sobre um tema para fins acadêmicos, ou qualquer outro motivo, pode ter os dados enviados à Justiça”, explica Camila Jimene, sócia do escritório de advocacia Opice Blum, especializado em direito digital. Segundo a especialista, as “pegadas digitais” dos suspeitos já são amplamente utilizadas em investigações, mas a lógica hoje é inversa: é preciso autorizar a apreensão dos dispositivos de cada suspeito já identificado. “É um precedente que vai influenciar os parâmetros de quebra de sigilo, e a legislação brasileira é construída para proteger a privacidade de cada usuário”, diz.
Na sessão de hoje do STF, o ministro André Mendonça votou contra a tese, colocando o placar em dois votos contrários à possibilidade e dois favoráveis. Mendonça acompanhou a relatora do caso, a ministra aposentada Rosa Weber, enquanto Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin se manifestaram a favor da quebra de sigilo de usuários indeterminados, desde que a ordem seja justificada e os dados de pessoas inocentes sejam descartados pela Justiça.
Recurso do Google tem origem no caso Marielle
A discussão no STF surge de um impasse envolvendo as investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Durante o inquérito, a Justiça Federal ordenou que o Google enviasse às autoridades uma lista identificando, literalmente, todos os brasileiros que fizeram pesquisas sobre Marielle nos dias anteriores à sua morte.
A ordem foi expedida em 2019 por um juiz de primeira instância do Rio de Janeiro, a pedido do Ministério Público Federal, e determinava a identificação dos dispositivos de qualquer usuário do Google que tivesse pesquisado, nas 96 horas anteriores ao crime, pelos termos:
- “Marielle Franco”
- “vereadora Marielle”
- “agenda vereadora Marielle”
- “Casa das Pretas” [onde a vereadora participou de um encontro em 14 de março]
- “Rua dos Inválidos, 122” ou “Rua dos Inválidos” [endereço da reunião]
O Google contestou a decisão judicial, argumentando que a medida violaria o direito à privacidade de pessoas inocentes e poderia servir como base para quebras generalizadas de sigilo no futuro. Na visão da empresa, o período temporal das buscas é extenso demais e os termos indicados são muito comuns, uma vez que se trata de uma pessoa pública. A big tech acrescenta que colaborou com as investigações fornecendo “outros dados”, vetando apenas as informações de usuários indeterminados.
A ordem, contudo, foi validada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), e o recurso escalou até chegar ao Supremo, onde os ministros reconheceram a repercussão geral do caso — em outras palavras, o resultado do julgamento, que retorna na próxima quinta-feira, 24, será considerado o precedente legal para todos os processos da mesma natureza.