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Marcos Emílio Gomes

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A coluna trata de desigualdade, com destaque para casos em que as prioridades na defesa dos mais ricos e mais fortes acabam abrigadas na legislação, na prática dos tribunais e nas tradições culturais

Huck não é Bolsonaro, mas pode ser ainda pior

O discurso bonito contra a desigualdade é incompatível com a exploração televisiva da pobreza. E esse é apenas um dos problemas do apresentador candidato

Por Marcos Emílio Gomes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 8 dez 2020, 16h37 - Publicado em 8 dez 2020, 16h11

A sabujice de Jair Bolsonaro diante de Donald Trump cria uma certa confusão quando se relacionam os perfis dos dois presidentes. O brasileiro, ainda que seja também um entusiasta da antipolítica levada a cabo pelo colega americano e goste de confundir conservadorismo com práticas fascistas, não é, como Trump, um outsider edificado pela mídia reacionária.

O capitão construiu efetivamente uma carreira política de extrema direita e continuaria até hoje na névoa do baixo clero do Congresso se uma facada não o tivesse escondido do desgaste da campanha eleitoral e o tornasse, para muitos, a única alternativa para enfrentar um fantasma. Foi então, digamos, adicionado ao grupo e, com o tempo, revelou-se tão incompetente, danoso e desorientado que muitos dos seus eleitores caíram no arrependimento.

Mas Trump tem, sim, um análogo em construção no Brasil, materializando-se na figura do marido da Angélica, apresentador de TV e garoto propaganda Luciano Huck, um projeto biônico cevado no quarto dos fundos de uma aliança conservadora que desenha um candidato-novidade para mudar tudo com a intenção verdadeira de não mudar nada – como aconteceu nos EUA.

Huck, que certamente tem talento para alguma coisa e carisma diante da massa, não pode ser condenado por ter pretensões eleitorais, ainda que almeje começar a carreira política sentado na janelinha do cargo mais importante do país. É natural que personagens elevados à condição de celebridade por circunstâncias que nunca controlaram nem se explicam por mestria e inteligência sintam-se ungíveis com o óleo santo da múltipla competência.

Polímata é o nome que se dá àquele cujo conhecimento e capacidade transbordam para diversas áreas. Não é, porém, exatamente aplicável a uma figura que, a despeito do pedigree recheado com advocacia, urbanismo, jornalismo e economia, espanou durante o curso de direito, foi estagiário em revista e agências de publicidade, empreendeu no ramo do entretenimento etílico noturno e alcançou a fama como sucessor tardio para o apresentador Chacrinha e precoce para o Faustão.

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Na legítima pretensão que acalenta, talvez fosse mais sensato que Huck buscasse antes um cargo menor, para demonstrar que, mesmo com esse currículo, tem as qualidades essenciais para a gestão da coisa pública. Essas capacidades não são, afinal, necessariamente originárias de esforço intelectual ou envolvimento nas questões comunitárias, políticas e sociais, como demonstra a carreira de muitos políticos que jamais estiveram próximos disso tudo e, mesmo assim, governaram competentemente.

Vale recordar, por exemplo, que o atual governador de São Paulo – outro que tem trajetória desconectada da realidade além-Jardins ou além-Ipanema –, fez turismo pela burocracia oficial antes de mergulhar no submundo partidário, confrontou a cacicada tucana de raiz para candidatar-se a prefeito e cacifou-se para chegar ao governo do Estado também em operações intramuros de seu partido. Se foi collorido num momento da vida ou aderiu a Bolsonaro e sua teologia do torturador na campanha de 2018 são outros 500 – por enquanto.

No caso do apresentador Luciano Huck, a suposta qualificação para o cargo de presidente vem sendo feita numa operação de aparente ventriloquia jornalística na qual seu papel não é o de ventríloquo. No súbito despertar de um talento para entrevistas veiculadas em papel, surgiu – muitos anos depois de colaborar numa seção de perguntas curtas e respostas idem na revista Playboy – conduzindo questionários sobre temas variados e complexos diante de personalidades como Yuval Harari, Thomas Friedman, Esther Duflo, Peter Diamandis, Thomas Piketty, Rutger Bregman, Fareed Zakaria e Anne Applebaum (os links da Wikipedia permitem economizar explicações).

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Uma revelação, sem dúvida. Mas um tanto esquisita, em termos de conteúdo, quando se buscam as entrevistas do próprio entrevistador, recheadas de platitudes distantes da complexidade exposta por seus “entrevistados”. Desenvolto ao tratar de temas como o sexo tântrico – uma prática talvez urgente para o país –, apresenta um cordão de lugares comuns quanto os temas são desigualdade e educação, supostamente suas grandes prioridades. Aí se inclui também a proteção ao meio ambiente, um assunto chato para quem, no passado, teve entreveros com o Ibama em razão de uma pousada no arquipélago de Fernando de Noronha.

Curiosa e constrangedoramente, muitos dos quadros que determinaram o sucesso de seu programa das tardes de sábado transformaram ou transformam em atração e objeto de curiosidade pública situações de miséria, de ignorância e de deficiência, quando não expõem ao nível da humilhação candidatos a prêmios em dinheiro.

É nesses pontos que seu perfil ameaça tocar comprometedoramente o do presidente americano prestes a deixar a Casa Branca, ainda que amarrado. Trump, fenômeno de reality show adotado como político pela ala menos republicana do Partido Republicano, fez campanha com um discurso em favor dos valores americanos e de uma recuperação econômica a ser partilhada com os desvalidos. Sua carreira jamais tinha registrado comprometimento com nada que fosse além da própria ganância empresarial e acabou governando com medidas voltadas à redução dos pobres e aumento da pobreza.

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A TV, na sua irrealidade, apresenta muitas vezes um mundo de soluções mágicas e fáceis, materializáveis exclusivamente a partir da boa vontade dos personagens. Quem vê as novelas ou o entretenimento barato dos programas de auditório geralmente tem bom senso suficiente para perceber que isso é só ficção. O espantoso é que algum dos envolvidos na criação dessas ilusões, como Huck, possa dar a entender que acredita de verdade nessas pantomimas. O maior risco de um candidato sem passado político e turbinado pela exposição na mídia eletrônica ao longo da vida é justamente vencer a eleição. E esse risco é maior ainda para os que o elegem.

O Brasil das últimas décadas pagou várias contas em governos disfuncionais – da gestão presidencial do ex-líder da ditadura no Congresso, com Sarney, a Bolsonaro, passando pela administração apresentada como cleptocracia na era Collor, pela negociação reeleitoral, pela criação de uma base de apoio assalariada, pela bonificação partidária nas estatais e pelo expediente presidencial noturno, com visitantes microfonados.

Huck tem todo o direito de se candidatar à próxima aventura, mesmo que há poucos anos, comentando a possibilidade, tenha dito que isso “seria uma insanidade”. Quem deve pensar se embarca ou não na insanidade são os eleitores.

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