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Marcos Emílio Gomes

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A coluna trata de desigualdade, com destaque para casos em que as prioridades na defesa dos mais ricos e mais fortes acabam abrigadas na legislação, na prática dos tribunais e nas tradições culturais

O pós-depois marcará o fim de uma regressão de 50 anos em 5?

Com Bolsonaro, o Brasil chega ao fundo do poço após uma guerra vencida pela discriminação e pela desigualdade

Por Marcos Emílio Gomes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 nov 2020, 15h55 - Publicado em 17 nov 2020, 15h17

A vantagem de chegar ao fundo do poço é não haver mais buraco para se afundar. O Peru, a Colômbia, a Bolívia, a Argentina e a Venezuela, cada país com suas próprias razões, destacam-se no grupo latino-americano que parece ter caído até esse ponto – uns patinando na lama sem perspectiva de grande recuperação, outros escalando vez ou outra alguns trechos de parede escorregadia, para chafurdar de novo ou manter-se precariamente acima do atoladouro.

A evidência de que o Brasil chegou enfim a esse limite é, portanto, péssima enquanto constatação, mas talvez menos ruim em termos de perspectiva. Não é possível desabar mais. Os dados que demonstram nossa derrocada em várias frentes estão disponíveis para quem mantiver a máscara corretamente sobre a boca, evitando usá-la como viseira antirrealidade.

Começando pela tragédia mais recente, nossa posição no ranking da Covid-19 é assoladoramente vergonhosa, principalmente por ter sido conquistada com esforços governamentais. Em dados da segunda-feira, dia 16 de novembro, da Organização Mundial de Saúde, o Brasil é o terceiro país com mais casos de contaminação em todo o planeta; o quarto na soma de diagnósticos em sete dias e segundo consideradas as 24 horas anteriores; segundo também em mortes reportadas desde a véspera e na totalização de vítimas fatais.

Na mais dramática das tabelas, que considera mortes por milhão de habitantes, disputamos lugar com a Bolívia e ultrapassamos alguns dos países europeus mais castigados pela pandemia: Itália e Reino Unido. Na segunda onda, a Espanha recuperou posição em relação ao Brasil, mas já tomou medidas para recuperar o controle da pandemia, enquanto aqui os sinais vão na direção oposta.

Na capital paulista, a primeira semana de campanha para o segundo turno da eleição de prefeito começou com quadras públicas e privadas reabertas para esportes coletivos – decisão que contradiz a sinalização de hospitais particulares sobre o risco de esgotamento da capacidade de atendimento para casos de coronavírus. Ignora-se nacionalmente o risco do rebate do coronavírus. E a pandemia, recordemos, é apenas o elo montado mais recentemente na corrente que puxa o Brasil para o buraco.

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No Anuário de Competitividade Mundial 2020 do Institute for Management Development, o país ocupa o último lugar no quesito educação, numa lista de 63 nações, perdendo duas posições em um ano. Não faz muito tempo que se divulgou o resultado mais recente do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), no qual se percebe que a medíocre situação educacional do país evolui, quando evolui, apenas pelo desempenho de alunos de escolas privadas que estão apenas geograficamente no Brasil, com currículos suíços e público de renda dinamarquesa.

Não é surpresa que o nível de desigualdade tenha chegado ao ponto de fazer o Brasil até melhorar em alguns rankings. No ranking do bilhão, da revista Forbes, foram acrescentados os nomes de mais 33 brasileiros este ano, o que representa quase 15% de aumento em relação ao ano anterior. Num levantamento recente, uma ONG reconhecida internacionalmente calculou em R$ 177 bilhões o acréscimo patrimonial alcançado pelos mais ricos apenas durante a partir da pandemia. Como os números mostram que o país está mais pobre – o que se verá a seguir –, isso é apenas resultado da transferência de renda dos mais pobres para os já milionários.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas apontou há duas semanas o risco de o país deixar o clube dos dez maiores PIBs, ultrapassado por Canadá, Coreia do Sul e Rússia. É falácia sugerir que a Covid-19 pode ter responsabilidade por esse quadro, uma vez que ela atinge a todos os países – o que muda é a competência no enfrentamento da doença e de suas consequências. A notícia mais nova sobre o PIB brasileiro revela que o FMI melhorou sua previsão: agora, estima-se que o PIB cairá apenas 5,8%.

O raciocínio é simples: se o patrimônio dos bilionários cresce 15% ao ano e o PIB desaba 6%, são os que estão na base da pirâmide os que ficam com a maior conta. Excluído o 1% da população que concentra mais 30% da renda (no cálculo mais conservador possível), o verdadeiro PIB per capita do Brasil não é de U$ 8.000, arredondados. Está próximo da metade desse valor.

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A arrecadação de impostos, em valores corrigidos, está 13% menor do que em 2020. No entanto, como não houve correção da tabela do imposto de renda (desde 2015, por sinal), os que se mantêm empregados e ganham menos estão pagando proporcionalmente ainda mais, ao lado dos que, contemplados pelo auxílio emergencial, gastaram seus bônus consumindo itens de primeira necessidade e contribuíram – destaque-se a ironia – para aumentar a inflação.

A taxa de desemprego recorde de 14,4% arremata o cenário de tempestade perfeita, principalmente quando se constata que o agronegócio, único setor econômico de crescimento real, gera proporcionalmente cada vez menos postos de trabalho, contribuindo, portanto, para concentração ainda maior da riqueza – no caso também com apropriação de subsídios e isenções que buscam estabelecer competitividade mas passam ao largo da exigência de contrapartidas de efeito social.

Essa obra monumental de destruição social e econômica no Brasil equivale a uma demolição que leva pelo ralo em pouco mais de cinco anos o acúmulo precário de conquistas minúsculas, mas somadas, de mais de meio século. Se nunca foi exemplo de crescimento sólido com democracia plena e distribuição equitativa de riquezas, o país aperfeiçoou em pouco tempo os níveis de perversidade e alcança o arremate dessa costura com a desastrosa gestão de Jair Bolsonaro.

Eleito como poste antipetista em consequência de uma facada que o eximiu de expor incompetência, incongruência, preconceito, ignorância e mitomania, o atual presidente talvez tenha o mérito de acelerar um processo de degradação que se daria mais lentamente sem sua contribuição, auxiliado por uma pandemia e por uma equipe em tudo dissonante do que o país precisaria –  no meio ambiente, na educação, na cultura, na diplomacia, na saúde e soberanamente na economia.

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Se Bolsonaro é um louco de hospício, como já vem sendo retratado, capaz, por exemplo, de só admitir a derrota de seu benchmark americano depois que o próprio Donald Trump vier a fazê-lo, seu ministro da Economia terá lugar na história como uma paródia do apelido que o presidente lhe deu, de Posto Ipiranga – promete quilômetros de vantagens, entrega, a preço alto, o mesmo ou menos que qualquer outro.

Líder de uma equipe indecentemente voltada para o aperfeiçoamento da perversidade – como demonstra a incessante busca de programas eleitoreiros custeados com a poda de recursos que financiam outros investimentos sociais –, Paulo Guedes sustenta um discurso de desoneração da atividade produtiva subsidiado com o corte de renda, e nem nisso tem sucesso.

Seu programa de privatização virou piada e as ações prometidas para cortar privilégios no setor público ignoram os verdadeiros privilegiados. Caminha para cravar o maior déficit fiscal de todos os tempos e dá entrevista ao Financial Times tecendo loas à aliança de um economista liberal com um presidente reacionário.

Nesse cenário, em algum momento cabe decretar o início da era do pós-depois, o ponto em que o país, tendo alcançado esse inegável fundo de poço, olha para cima e começa a arranhar as paredes. As eleições municipais trazem as notícias de que as fake news tiveram influência menor nas votações, candidatos apoiados pelo presidente claudicaram nas urnas e campanhas que discutiram questões reais em lugar de besteiragem ideológica tiveram mais sucesso.

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Ponto para eles, como diria Bolsonaro, sendo “eles”, neste caso, os que ainda acreditam na democracia como única saída para todas as crises. Por mais que seja desanimador o panorama brasileiro, há exemplos de países que saíram de situações piores, como a Europa no pós-guerra. É verdade que houve um Plano Marshall e, como gosta de repetir Paulo Guedes, precisa haver uma guerra antes de um plano parecido.

Mas, olhando bem, talvez esteja terminando no Brasil, ainda e de fato, uma guerra. A discriminação e a desigualdade venceram. O pós-depois é a oportunidade de escrever uma história diferente. Pessimismo, numa altura dessas, seria achar que ainda se pode encontrar o que espoliar. [Para comentar este texto use por favor este link.]

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