Até onde se pode enxergar na neblina de confusões que geralmente encobre seus pensamentos, o presidente Jair Bolsonaro, ocupado com outros afazeres, parece ter desistido de pressionar o Ministério da Saúde a apresentar um protocolo de desligamento da quarentena desconectado do que recomendam o bom senso, os especialistas mais respeitados e a Organização Mundial da Saúde.
Pode-se aproveitar essa folga da bagunça que vinha consumindo esforços de quem quer pensar sobre o Brasil e o mundo no longo prazo para começar a perguntar como o país e também outros países vão se organizar depois que a tormenta sanitária estiver, senão superada, pelo menos transformada numa intermitente garoa epidêmica – hipótese que os pesquisadores de melhor conceito imaginam mais provável até que se chegue a uma vacina.
A construção de um novo modelo profilático com acompanhamento em tempo real e alcance global é, por sinal, a tarefa prioritária já anunciada de cientistas da área médica não empenhados na busca da imunização contra a Covid-19, o que nos levará a viver de um modo novo e mascarado, com maior controle sobre viagens internacionais e campanhas de erradicação de riscos extragovernamentais.
Reordenar a economia global está, também, na lista de afazeres para líderes de todas as nações, a despeito do que possa pensar Donald Trump quanto à autossuficiência americana e à possibilidade trocar a mediação de uma entidade mundial por acordos bilaterais. A começar das viagens internacionais, passando pela indústria de componentes eletrônicos e pela comercialização de alimentos, o grau de globalização é tão alto que o desligamento de qualquer conexão ameaça tanto quanto o coronavírus.
Trump pode sustentar seu discurso isolacionista até a eleição americana, em novembro. Depois, se vencer, volta poderoso à mesa de negociação e pode usar o peso econômico americano para reformar instituições que estavam distantes da perfeição. É mais prático controlar um organismo global do que estar sujeito a ajustar milhares de pequenos contratos, com parceiros com quartos e quintos interesses em cada transação.
No aspecto social, é preciso lembrar que a crise do coronavírus, acoplada ao choque invertido do petróleo, pulverizou uma quantidade de empregos que nem é possível ainda calcular neste momento. Essa situação criou um cenário que, se não for equacionado, tornará inviável o sucesso de qualquer tentativa de retomada econômica e inútil todo esforço da ciência para criar um modelo efetivo de monitoramento de riscos sanitários.
Ainda antes da pandemia, a questão do desemprego nos países socialmente mais organizados e das migrações nas regiões de conflito ou de desestruturação política já havia se tornado uma emergência que exigia solução integrada. O que era questão de tempo, bomba relógio a pedir urgência, torna-se, a partir da equação da crise viral, com a multiplicação de falências e da parada na circulação do dinheiro, uma explosão inevitável.
Quase ninguém está lembrando agora, mas alguns temas fundamentais anteriores à crise eram a mudança nos paradigmas do trabalho, da aposentadoria e da sustentação dos excluídos. A ação planetária do Sars-CoV-2 e a inédita valoração negativa do barril de petróleo só fizeram multiplicar as questões dramáticas que estavam em debate.
Redução das jornadas de trabalho, estímulos à economia do compartilhamento, estatização de centros de atenção a idosos, estabelecimento de programas de renda básica universal, reorganização tributária, cortes nos investimentos militares, eliminação de incentivos fiscais, novas taxas para a atividade bancária, criação de mais impostos sobre lucros e fortunas e até mudanças urbanísticas para reduzir o custo de viver nas cidades eram temas que estavam na pauta não de partidos políticos, mas de governos e de personalidades com prestígio suficiente para ocupar tribunas do Fórum Econômico Mundial.
Todas essas possibilidades voltarão à discussão imediatamente, turbinadas pelas novas emergências econômicas. E no Brasil, como ficaremos? (O texto do site Ora Essa! que pode ser lido neste link trata das condições de desigualdade no país antes das novas crises.)
No governo, vê-se o tamanho da surpresa produzida pelo número de pessoas que recorreu ao auxílio emergencial: quase 50 milhões. Especula-se, quanto a isso, sobre a possibilidade de que Bolsonaro veja aí a chance de criar seu próprio bolsa-família e, filtrando os cadastros, estabelecer um programa de longo prazo para manutenção de renda entre os que agora são chamados de ex-invisíveis.
Por mais que isso venha a ser um golpe eleitoral, não se pode desprezar o efeito que teria na vida de quase um quarto da população brasileira. A primeira questão, claro, seria como financiar um programa dessa dimensão sem desestruturar os ajustes econômicos que custaram tantos anos e tantos sacrifícios até ser obtidos. Com inflação qualquer coisa é fácil. E mortal.
O segundo problema, mais complexo, seria ordenar essa distribuição de recursos como um projeto para levar os carentes de renda a um patamar no qual sejam capazes de sair do programa. Isso combina a necessidade de expansão econômica com criatividade para inserir no mercado um tipo de mão de obra que não pode esperar nem tem condições de alcançar a especialização demandada atualmente.
Uma coisa é valorizar artesanato ou a atividade de coleta em pequenas comunidades. Outra é lidar com 15 milhões de desempregados, 30 milhões considerados subutilizados, três milhões de desalentados, que desistiram de buscar ocupação formal, e sabe-se lá quantos que nunca foram contados antes das monstruosas filas que se vê agora diante de agências da Caixa Econômica.
Os programas nos quais o governo tem investido estão distantes da abrangência necessária, mesmo como objetivo. O chamado programa Verde Amarelo está em rediscussão e não há nem mesmo um Ministério do Trabalho para centralizar o estudo do problema.
A lógica do ministro Paulo Guedes, que não é condenável em princípio, reza que o estímulo e a regulação econômica devem fazer os agentes se moverem na direção esperada e isso leva a condições em que se equilibram a demanda e a oferta de mão de obra. Assim, os problemas sociais, atendendo-se como exceção os casos extremos, tendem a se reduzir, no longo prazo. Faz todo sentido. Quando há longo prazo e quando os casos extremos são mesmo exceção.
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