A influência das redes sociais na percepção da justiça
Em artigo enviado à coluna, Davi Lago e Ana Clara Baggio avaliam o panorama complexo de interações sociais e a consequência na Justiça

O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo cassou no dia 30 de janeiro o diploma de deputada federal de Carla Zambelli (PL/SP), tornando-a inelegível por oito anos a partir de 2022. A decisão pode ser contestada no Tribunal Superior Eleitoral. No cerne da ação está a questão do uso indevido dos meios de comunicação e abuso de poder político, com a divulgação massiva de desinformação sobre as eleições, incluindo alegações falsas sobre fraudes em urnas eletrônicas. Para além da querela judicial inacabada, este episódio realça mais uma vez o quanto as plataformas digitais ocupam um lugar central no debate jurídico-político contemporâneo. Não apenas como um novo meio de transmissão de informações, a reconfiguração digital da sociedade altera as balizas da própria percepção da justiça pelos cidadãos.
Susan Opotow, renomada pesquisadora sobre este fenômeno, afirma que o âmbito da justiça, também denominado de comunidade moral, é um processo psicológico que está associado à preocupação dos indivíduos com a aplicação dos princípios de justiça a um determinado grupo, considerado uma entidade psicológica autônoma. Neste contexto, a construção do âmbito da justiça, enquanto comunidade moral, mostra-se profundamente influenciada pela sociedade digital, pois as percepções e preocupações dos indivíduos em relação à aplicação de princípios justos são atravessadas continuamente pelo tipo de informação que circula em suas bolhas cognitivas.
Deste modo, a disseminação ininterrupta de informações notoriamente falsas é capaz de amplificar preconceitos sociais, moldando o apoio público a determinadas decisões judiciais ou atos, mesmo quando justos, levando à sua deslegitimação. Ou seja, as plataformas digitais facilitam a disseminação de narrativas que podem distorcer as questões de justiça, impactando a forma como os determinados grupos e procedimentos são percebidos e, consequentemente, como a proteção moral é aplicada. Assim, a influência das redes sociais na formação da comunidade moral contribui para a legitimação ou deslegitimação de determinadas situações e decisões judiciais, refletindo um panorama complexo de interações sociais. Há, portanto, interconexão entre a mídia digital e a comunidade moral, revelando as tensões contemporâneas entre os conceitos de justiça, moralidade e a opinião pública. Essa dinâmica complexa sugere que a formação de opiniões não se dá em um vácuo, mas é permeada por influências sociais que podem distorcer a percepção coletiva e, por conseguinte, a aplicação justa da lei.
A questão que se levanta nos sistemas políticos democráticos é: como mitigar a desinformação digital sem violar os valores democráticos? Em 2018, a União Europeia organizou um grupo de referência para responder de modo prático esta questão. O documento elaborado, que permanece uma referência internacional, estabeleceu quatro princípios e objetivos abrangentes no combate à desinformação: (1) melhorar a transparência no que se refere à origem da informação, incluindo sua produção, patrocínio, divulgação e direcionamento; (2) promover a diversidade de informação, por permitindo que os cidadãos tomem decisões informadas com base no pensamento crítico, mediante o apoio ao jornalismo de alta qualidade, à literacia mediática e ao reequilíbrio da relação entre os criadores e os distribuidores de informação; (3)promover a credibilidade da informação, fornecendo uma indicação da sua fiabilidade, nomeadamente com a ajuda de sinalizadores de confiança, bem como melhorando a rastreabilidade da informação; e (4) oferecer soluções inclusivas, baseadas na educação midiática contínua, o queexige a sensibilização do público, um amplo envolvimento das partes interessadas e a cooperação entre autoridades públicas, plataformas digitais, anunciantes, sinalizadores de confiança, jornalistas e grupos de comunicação social.
Bravatas eleitoreiras e disseminação de mentiras, apenas perpetuam a miséria sociopolítica. As quatro diretrizes contra a desinformação postuladas pela comissão da União Europeia – transparência, diversidade informacional, rastreabilidade e cooperatividade – exigem um compromisso ético e educativo de longo prazo.
*Davi Lago é coordenador de pesquisa do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (LABÔ PUC-SP) edoutorando em Filosofia e Teoria do Direito pela USP.
** Ana Clara Baggio é pesquisadora do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (LABÔ PUC-SP) e professora na Faculdade Andreotti.