A prevenção à corrupção na Nova Lei de Licitações
Daniel Lança apresenta pontos de avanço no combate à corrupção e fomento ao compliance na nova lei de licitações brasileira
No atual contexto de evidente retrocesso no combate à corrupção no Brasil, uma novidade na legislação nacional traz motivos de celebração: a nova lei de licitações (Lei Federal nº. 14.133/21) entrou em vigor com instrumentos modernos de prevenção à corrupção. Não era tudo o que os especialistas em compliance anticorrupção queriam, e há claro espaço para evolução no futuro. Didaticamente, apresento os pontos fortes e os equívocos da nova lei de licitações a seguir.
Já dissemos em outras oportunidades que a corrupção não se combate apenas com persecução penal que, embora importante, não se sustenta sozinha ao bastar-se para enxugar gelo eternamente. É preciso criar um sistema assertivo de prevenção ao suborno para que esse mal sequer veja a luz do dia em situações em que seja possível impedi-lo.
Essa linha de entendimento não é recente, e vem das convenções internacionais de combate à corrupção que o Brasil é signatário e que dispõe tanto sobre ferramentas de transparência nas contratação públicas quanto o fomento à integridade ao setor privado, nomeadamente as convenções da Organização dos Estados Americanos (OEA), 1996; da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 1997 e, mais recentemente, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2002.
Nesse sentido, uma das melhores ações no fomento à integridade junto às empresas que contratam com poder público é o incentivo à implementação e aperfeiçoamento dos Programas de Integridade ou de compliance, presentes na nova lei de licitações. Quanto aos Programas de Integridade, são quatro as novidades a serem celebradas na Lei Federal nº. 14.133/21, senão vejamos:
- 1) No caso das contratações de grande vulto – aquelas acima de R$ 200 milhões de reais – os Programas de Integridade são obrigatórios ao licitante vencedor, a ser implementado no prazo de seis meses da celebração do contrato administrativo (art. 25, § 4º);
- 2) Em caso de empate entre duas ou mais propostas, um dos critérios de desempate é o desenvolvimento pelo licitante de Programa de Integridade (art. 60, IV);
- 3) No caso da aplicação de sanções administrativas, será considerada como atenuante a implantação ou aperfeiçoamento de Programa de Integridade (art. 156, § 1º); e
- 4) Uma vez responsabilizado administrativamente, cabe ao licitante ou contratado reabilitação, condicionada – em alguns casos – à implementação ou aperfeiçoamento de Programa de Integridade (art. 163, parágrafo único).
Em todos esses casos, caberá aos órgãos de controle interno (como a Controladoria-Geral da União, no âmbito do Poder Executivo Federal) editar normas e orientações e sobretudo avaliar a adequação e eficácia dos Programas de Integridade dos licitantes ou contratados em cada uma das hipóteses acima.
Outra novidade premiada da nova lei diz respeito à responsabilização administrativa de licitantes ou contratados que pratiquem quaisquer dos atos lesivos contra a Administração Pública previstos na Lei Anticorrupção (art. 155, XII), indo além das condutas típicas de fraudes a licitações conhecidas na antiga lei de licitações (Lei Federal nº. 8.666/93).
Um último fato que vale menção honrosa é a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), que além de centralizar dados, registros e sistemas (big data), passa a incorporar o acesso ao Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (CEIS) e ao Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP), dois bancos de dados importantes para as futuras realizações de due diligence que impedirão a contratação de empresas suspensas ou punidas.
A nova lei de licitações, entretanto, também perdeu a oportunidade de avançar ainda mais na prevenção à corrupção. Cito quatro pontos aqui.
- 1) A obrigatoriedade dos Programas de Integridade só vale para licitações acima de R$ 200 milhões, provavelmente por alegar certa dificuldade em operacionalizar um sistema de compliance por empresas menores. Esse é um mito que precisa ser desconstruído por ser completamente inverídico. A implementação de programas de integridade é cada vez mais acessível, inclusive a microempresas ou aquelas de pequeno porte. E seus benefícios são imensos;
- 2) A punição das condutas mais graves ainda é tratada na seção sobre crimes – que até tiveram suas penas aumentadas – os quais não se aplicam à pessoa jurídica que se beneficia da conduta ou que determina a prática do delito. Caberia uma visão mais moderna, oriunda do Direito Penal Mínimo, que premia a prevenção corporativa ao mesmo tempo em que gera punição mais assertiva;
- 3) A multa aplicada nos casos de responsabilização administrativa se dá apenas quanto ao inadimplemento contratual, e seu quantum é estabelecido a partir do instrumento convocatório ou limitado ao valor do contrato administrativo – uma enorme diferença em relação ao instituto da multa contabilizada a partir do faturamento bruto do ano anterior estabelecida na Lei Anticorrupção (Lei Federal nº
. 12.846/13), muito mais eficaz na prevenção de delitos contra Administração;
- 4) A avaliação da adequação e eficácia dos Programas de Integridade pelos órgãos de controle interno tende a se mostrar um fardo muito pesado, sobretudo pela carga excessiva de trabalho desses times. Ademais, a tarefa é bastante especializada e poderia ser delegada à iniciativa privada, que funcionaria como auditorias externas independentes, cabendo aos órgãos de controle a supervisão. Há iniciativas muito interessantes nas certificações de compliance antissuborno, como a ISO 37001, exigidas atualmente das empresas que assinam acordos de leniência com a União.
Por fim, vale relembrar que o Poder Público pode e deve fomentar a integridade do setor privado, sem entretanto deixar de fazer a lição de casa. Não é razoável exigir ao privado ações que a própria Administração Pública não implementa. Nesse sentido, é ainda tímido o avanço de institutos de compliance público nos órgãos de poder dos três entes federativos. É uma questão de coerência.
Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)