A história do mundo, e particularmente a do Brasil, é regida muitas vezes por problemas de interpretação de texto. Ou melhor, pelo mau uso de determinados textos. O exemplo mais comum provavelmente é a bíblia. Uma obra que tem como base uma figura guiada pelo amor ao próximo, mas que é constantemente usada para promover o ódio.
O amor, aliás, é talvez o tema que mais gera essas incompreensões ou distorções mal intencionadas. É ele também um dos assuntos importantes do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, que ficou conhecido por ser sinônimo de atitudes inescrupulosas. O texto, no entanto, é muito mais profundo do que isso. É um grande tratado sobre como líderes tiveram sucesso governando diversos Estados.
Quando pergunta se é melhor para um líder ser amado ou temido, ele diz o seguinte: “seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado”.
Essa frase foi usada por séculos de forma indevida para promover o medo. Reis, imperadores e presidentes se baseiam nisso até hoje na busca incessante pelo poder, mas se esquecem do valor do amor e da esperança para o povo. Se esquecem também de um segundo ponto levantado por Maquiavel no mesmo capítulo do livro: “Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer de forma que, se não conquistar o amor, fuja ao ódio”.
E nessa ânsia louca por poder, os cavaleiros do apocalipse espalham o medo muitas vezes destilando o ódio. Quando na verdade, se for lido o cerne do texto, o que se prega é a busca do amor do povo, mas de forma a manter o temor que garanta o respeito. O escritor justifica a afirmação dizendo que “os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer”.
Essa discussão me veio à mente nos últimos dias ouvindo um debate entre Mano Brown e Criolo, no evento Rio2C, no Rio de Janeiro. A atriz e cantora Larissa Luz, que mediou a conversa, perguntou aos dois sobre o sorriso e o afeto no rap, fazendo alusão à fama de mal encarado de Brown.
Uma das conclusões da conversa foi sobre como é comum não haver sequer espaço para o sorriso na vida do povo brasileiro, principalmente para o povo preto e de periferia. A realidade no entorno é tão dura, a desigualdade e a pressão é tanta, que, nas palavras de Criolo, “muitas vezes se você sorrir você é amassado pelo mundo”.
Às vezes, como Criolo e Brown muito bem colocaram, é impossível conquistar o respeito pelo amor e pelo sorriso. A quem está totalmente desprotegido e desamparado, é comum só sobrar o caminho do medo. Cabe ao Estado, aos que deveriam ser líderes de verdade, trabalhar por um país que permita o amor. Essa luta é talvez a mais difícil, porque passa por todos os âmbitos, desde a educação, a saúde e a economia até o campo da cultura. Das necessidades básicas até as construções simbólicas.
Os bons são maioria, mas precisam ser defendidos e respeitados para que o amor possa ser visto.
Ainda assim, temos um grande vácuo de líderes que abarquem com integridade e coerência todos esses pontos. Não existe dúvida de que hoje essa abertura de caminhos não será fácil. Nem há espaço para ilusões com salvadores da pátria. Mas a pergunta que talvez seja a mais importante na hora de definir os próximos anos do Brasil esteja nessas duas pontas: Queremos um país que cultiva o medo ou um país que abre espaço para o amor?
Aos que considerarem essa pergunta romântica e ingênua, deixo um último trecho da obra de Maquiavel: “as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado, ou são suas próprias ou são mercenárias (…). As mercenárias são inúteis e perigosas e, se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis (…); não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína, quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra, pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão que as mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo”.
Quem continua debochando do amor como ingenuidade, vale reler esse trecho e lembrar das armas que espalham o medo e mantêm o temor em campo no Brasil hoje.
* Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro