Há três anos, Gabriela Prioli levava uma vida no anonimato. Advogada criminalista, com mestrado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco (USP), Prioli dividia a sua vida entre suas aulas como professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, seu escritório de advocacia e algumas aparições casuais na TV. Somente em março de 2020, com sua participação fixa como comentarista política no quadro “O grande debate” do telejornal CNN Novo Dia, a jovem de 36 anos despontou como uma grande revelação ao público.
Dona de uma impecável retórica que faz jus a sua excelente carreira como advogada, Prioli ficou conhecida por desarmar seus oponentes políticos com raciocínio perspicaz, além da eficiente comunicação. Depois de algumas temporadas como apresentadora do CNN TONIGHT, ao lado de Leandro Karnal e Mari Palma, atualmente está à frente do “À Prioli”, programa de entrevistas na mesma emissora. Prioli também mantém um canal no YouTube com mais de 900 mil inscritos e é autora do best-seller “Política é para todos”.
Em entrevista à coluna, a advogada fez comentários sobre a instrumentalização da fé evangélica pelo bolsonarismo no último pleito. “O que tínhamos durante o processo eleitoral era um candidato que frequentemente dizia haver uma luta do bem contra o mal em curso no Brasil. Ele era o bem e quem fosse contrário a ele, encarnava o mal”, ressaltou num trecho da entrevista. “Dessa forma, houve um desprestígio do Cristianismo, pois, a religião cristã é muito maior que qualquer candidatura política”, completou.
Ainda segundo Prioli, “ao invés de criticarmos e ridicularizarmos as pessoas que aderiram ao movimento bolsonarista, devemos pensar como podemos oferecer a elas a oportunidade de sentirem-se valorizadas e relevantes”.
Grávida de 36 semanas, a comunicadora também falou sobre a experiência da sua gestação. “A gente não controla nada. A gravidez tem me ensinado isso.”
Leia a seguir a entrevista completa:
Rodolfo Capler – Você é uma pessoa religiosa?
Gabriela Prioli – Eu tenho fé. A minha fé é muito particular e tem influência de religiões diversas. Eu a exerço sem intermediários. As minhas influências religiosas vieram do ambiente familiar; todos eram muito católicos. Para você ter uma ideia, o melhor amigo do meu avô paterno era o padre Alcídes (risos). Depois de um tempo, uma parcela da família da minha mãe começou a praticar o espiritismo kardecista. Em casa, o Thiago, meu marido, é evangélico, porém, um evangélico que renunciou aos intermediários. Ele é a pessoa mais cheia de fé que eu conheço, pois, mantém uma fé inabalável! Infelizmente, por conta de algumas decepções que sofreu com lideranças evangélicas, ele se afastou da igreja.
Rodolfo Capler – O que você tem a dizer sobre o processo de politização da religião evangélica no Brasil?
Gabriela Prioli – A politização da religião não começa com os evangélicos. Por exemplo, se você entrar num tribunal, encontrará ali um crucifixo. Ou seja, essa mistura da religião com outros aspectos da vida pública existe faz tempo. Por essa razão, penso que a pergunta que devemos nos fazer é a seguinte: por que somente quando os evangélicos misturam a fé com a religião sentimos um incômodo mais profundo? É óbvio que essa mistura não é saudável para as religiões. O Estado deve ser laico para resguardar a liberdade de manifestação religiosa (ou não religiosa) de todos os indivíduos.
Rodolfo Capler – Um dos eixos da campanha presidencial foi a disputa pelo voto evangélico. Porém, após a vitória de Lula, alguns pastores renomados se distanciaram do derrotado presidente Bolsonaro. Como você analisa esse processo?
Gabriela Prioli – A partir da sua pergunta eu suscitaria uma reflexão sobre a forma dogmática de pensar. Se eu sou incentivada a ter um comportamento de não contestação, que não faz críticas e ressalvas, mas que apenas incorpora “verdades absolutas”, fica muito mais fácil de eu ser manipulada pelas minhas lideranças. O que tínhamos durante o processo eleitoral era um candidato que frequentemente dizia haver uma luta do bem contra o mal em curso no Brasil. Ele era o bem e quem fosse contrário a ele, encarnava o mal. Esse discurso foi uma forma de instrumentalizar a fé cristã para fins políticos. Dessa forma, houve um desprestígio do Cristianismo, pois, a religião cristã é muito maior que qualquer candidatura política. No domingo do segundo turno pela manhã a mensagem defendida por essa ala político-religiosa era de que “fosse feita a vontade de Deus”. À noite, logo após o resultado das urnas, o discurso mudou. Com a vitória de Lula, eles instrumentalizam novamente a fé encampando o discurso de que a derrota não passava de uma “provação divina”. A partir daí, temos dois movimentos dentro das igrejas evangélicas. Um movimento acena uma aproximação do governante eleito e outro se opõe ao resultado do pleito, buscando se organizar para relativizar esse resultado. Por essa razão, a questão que eu levantei é muito pertinente. Se você é ensinado a não questionar aceitará mais facilmente as imposições que vem de cima para baixo.
Rodolfo Capler – Sendo advogada criminalista e professora de Direito, qual é a sua avaliação sobre as determinações do ministro Alexandre de Moraes, presidente do STE, durante o último processo eleitoral?
Gabriela Prioli – Como criminalista e professora de Direito eu precisaria analisar cada posicionamento do ministro Alexandre de Moraes para emitir uma opinião coerente. Sem uma análise integral de cada posicionamento tomado pelo ministro, o meu parecer seria muito superficial. Agora, o que eu acho que deveríamos pensar é na conjuntura em que essas determinações foram emitidas. O contexto no qual essas decisões foram tomadas pelo TSE foi profundamente marcado por desinformação, propagação de notícias falsas e descontextualizadas, que viciam a vontade do eleitor. Um dado relevante que precisa ser considerado na análise desse contexto é que o uso das redes sociais no Brasil é algo muito significativo. Por aqui, as operadoras de telefonia liberam gratuitamente o uso do WathsApp sem que isso afete o pacote de dados. Ou seja, você recebe uma notícia falsa pelo WathsApp sem gastar o seu pacote de dados. Mas, se entrar num site de um jornal para checar a fidedignidade dessa informação, você gasta o seu pacote de dados. Num país como o Brasil, em que as pessoas enfrentam desigualdade e aguda crise financeira, esse é um dado extremamente relevante. Foi nesse contexto que o TSE teve de trabalhar. Por isso, penso que qualquer análise das determinações do ministro Alexandre de Moraes e do Tribunal Superior Eleitoral deve ser feita à luz dessa conjuntura.
Rodolfo Capler – Analistas concordam que o bolsonarismo veio para ficar no Brasil. Como negociar com um setor tão radical como este?
Gabriela Prioli – Eu gostaria de mencionar o livro “A mente moralista” do psicólogo social Jonathan Haidt. Foi a primeira leitura que fizemos no meu Clube do Livro neste ano. Haidt afirma que a gente se comporta a partir dos nossos afetos e de nossas impressões para depois racionalizarmos sobre determinado tema. Assim, quando pensamos sobre qualquer coisa, o fazemos para justificar as nossas impressões. Levando isso em conta, acredito que o grande desafio que temos frente ao bolsonarismo é furarmos a bolha e falarmos às impressões e aos afetos dos seus adeptos. Não é uma tarefa fácil, mas é possível. Só conseguiremos falar às impressões dessas pessoas quando nos esforçarmos para entendermos como elas se comportam e por quais razões se filiaram ao movimento bolsonarista. Acredito que, entre as razões de adesão ao bolsonarismo, se encontram um mundo que muda a todo momento, uma situação de fragilidade das pessoas e uma política que se distanciou do cidadão comum. Nesta época dominada pelas redes sociais, a maioria das pessoas se sente sem valor e insignificante. No fundo, todo mundo quer ser visto, notado e curtido. Diante disso, o bolsonarismo ofereceu a essas pessoas uma oportunidade de existir e de fazer parte de alguma coisa. Por isso, penso que, ao invés de criticarmos e ridicularizarmos as pessoas que aderiram ao movimento bolsonarista, devemos pensar como podemos oferecer a elas oportunidades de sentirem-se valorizadas e relevantes.
Rodolfo Capler – Os resultados das eleições mostram um Brasil completamente dividido. Na sua opinião, o que Lula pode fazer para governar um país tão polarizado?
Gabriela Prioli – Eu não tenho uma bala de prata para solucionar os nossos problemas. Acho que o que precisamos, antes de tudo, é de humildade para entendermos que os problemas que temos são novos e não serão resolvidos com soluções antigas. O presidente eleito precisa de muito diálogo e de um discurso de conciliação e de inclusão para unir o país.
Rodolfo Capler – Você é autora do best-seller “Política é para todos” com um canal no YouTube dedicado a temas políticos com mais de 900 mil inscritos. Como você avalia o interesse dos brasileiros pela política?
Gabriela Prioli – Eu tenho a impressão de que algumas pessoas estão realmente mais interessadas em compreender os temas políticos. Outras desejam se inteirar sobre política apenas para ter um discurso para reproduzir em suas redes sociais. Por último, identifico pessoas que se sentem pressionadas a consumir algo sobre o tema para não serem ostracizadas. De qualquer maneira, eu fico feliz que as pessoas estejam se aproximando da política.
Rodolfo Capler – No próximo dia 30/11 será o lançamento do seu novo livro “Ideologias”, no qual você explica quem são e no que pensam os liberais, os conservadores e os socialistas. Você acredita haver possibilidades de diálogo entre essas três correntes ideológicas num Brasil tão polarizado?
Gabriel Prioli – A possibilidade de diálogo é ampla, desde que todo mundo se conscientize de que as divergências são saudáveis. Na feitura do meu livro “Ideologias” eu e minha equipe tivemos muito cuidado em mostrar o que os intelectuais dessas correntes de pensamento dizem sobre o mundo. Por exemplo, dentro do espectro político à esquerda há muitas divergências. Se olharmos para a história das Internacionais Socialistas veremos várias questões em disputa. Na Primeira Internacional houve a briga entre marxistas e anarquistas. Já na Segunda Internacional tivemos a questão da social-democracia. Estas divisões não desapareceram ainda. São latentes no tempo presente. Entre os conservadores e liberais a mesma coisa acontece. Por isso, é necessário pensarmos no que estamos dizendo ao debatermos as correntes ideológicas. Quando falamos de liberalismo, estamos nos referindo a Herbert Spencer ou a John Stuart Mill? Quando abordamos o conservadorismo, levamos em conta os conservadores distributistas que se opõe tanto ao capitalismo quanto ao socialismo? É importante que a gente entenda a existência de nuances na esquerda e na direita. Além disso, uma democracia só é forte e pujante com muita divergência.
Rodolfo Capler – Na sua opinião faz sentido falarmos em meritocracia num país tão desigual como o Brasil?
Gabriela Prioli – Definitivamente, a meritocracia não explica o nosso mundo e o nosso país. Nós vivemos numa época marcada pela sorte, pela contingência e pelo aleatório. Este mundo, antes de tudo, é muito desigual, portanto, não faz nenhum sentido dizer que o sucesso das pessoas é fruto unicamente do esforço. Afirmar isso é um absurdo. Entretanto, precisamos deixar algum espaço para o empenho individual. O esforço, inegavelmente, gera um impacto positivo na vida das pessoas. Digo isso me amparando no pensamento de Paulo Freire em “Pedagogia da autonomia”. Freire diz que somos condicionamos pelo ambiente, porém, não determinados. Somos condicionados pelas circunstâncias, mas não determinados. Por isso, quando não deixamos nenhum espaço para a valorização do esforço individual, descredibilizamos aquele indivíduo que se esforça e obtém êxito em condições absolutamente adversas. Quando uma pessoa que se esforça tanto ouve que o seu esforço não importa, ela se ressente. Isso porque ninguém que tanto se esforça, acordando cedo e fazendo das tripas, coração, pensa as questões de forma generalizante. É aí que entra o apelo do discurso meritocrático que acaba fazendo sentido para as pessoas que se esforçam muito, mas que não são reconhecidas por isso. Em suma, o esforço individual não explica a realidade, mas é um fator que deve ser considerado para que todos se sintam vistos e reconhecidos.
Rodolfo Capler – Você está grávida pela primeira vez e em breve dará à luz uma linda menina. O que a experiência da gestação tem lhe ensinado?
Gabriela Prioli – A principal lição que tenho aprendido é que a gente controla muito pouco. Isso se choca contra o nosso desejo de controlar todas as coisas. É engraçado que todas às vezes que eu me manifesto nas minhas redes sociais dizendo que estou tranquila e que estou deixando as coisas se desenrolarem as pessoas ficam apavoradas (risos). A gente não controla nada. A gravidez tem me ensinado isso.
Rodolfo Capler – Há três anos você era desconhecida do público. Hoje é uma das maiores apresentadoras da TV Brasileira, amada e reverenciada por todos. Como você lida com a fama e com o sucesso?
Gabriela Prioli – Eu não lido com a fama, pois, não me sinto famosa. Para ser sincera, eu lido com o fato de ser conhecida. Acho que essas duas coisas são diferentes. No mais, eu fico feliz, pois, tive a oportunidade de me apresentar às pessoas de maneira muito transparente. Eu surgi na comunicação com uma liberdade que talvez nem todas as pessoas experimentem. Posso dizer com segurança que os meus seguidores me conhecem profundamente. Eles sabem quais são as minhas opiniões sobre quase todos os assuntos. Enfim, eu percebo que a maneira como eu me apresento legitima muitas existências. Não há alegria maior do que essa.
Rodolfo Capler – Em decorrência de uma entrevista sua à VEJA, em agosto deste ano, você foi virtualmente afrontada pelo presidente Jair Bolsonaro. Como você lida com a violência digital e com os discursos de ódio?
Gabriela Prioli – Intimamente, eu sofro. Eu preciso tomar medidas pessoais para me proteger e para proteger a minha família. Este acaba sendo o custo para quem se expressa livremente. Eu procuro me resguardar, mantendo uma posição amena, sem, contudo, deixar de me posicionar. O meu posicionamento é um jeito de enfrentar essa onda de violência.
Rodolfo Capler – Após esse conturbado processo eleitoral, qual mensagem você gostaria de deixar aos brasileiros e brasileiras?
Gabriela Prioli – Nós somos um país riquíssimo, formado por pessoas honestas e trabalhadoras. Infelizmente, há alguns indivíduos querendo nos instrumentalizar para interesses que não nos dizem respeito. Por isso, a minha mensagem é a seguinte: que tenhamos clareza para perceber quando os interesses de determinadas lideranças são distintos dos nossos interesses.
* Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo-PUC