A história de obstáculos no caminho da Cinemateca Brasileira é um reflexo triste de muito do que representa o Brasil, um país de tanta riqueza enterrada e incinerada.
Um ano depois de se tornar uma entidade independente, a instituição passou pelo seu primeiro incêndio em 1957. Nas décadas seguintes, foram mais quatro incêndios (1969, 1982, 2016 e 2021) e uma enchente (2020). O fogo mais recente, no final de julho, talvez seja o mais simbólico, dados os inúmeros avisos prévios que prenunciavam a tragédia.
As queimadas da nossa história cultural são mais um atentado contra o país, que já sofreu muito em décadas passadas, mas nunca viu tanto fogo e destruição como agora. As chamas da Cinemateca, além de simbólicas, são também um manto de cinzas que vêm se espalhando pelas cores do Brasil nos últimos tempos. Uma massa de poeira mortal que se mistura a outros péssimos ingredientes e transforma em lama tudo à nossa volta.
Lembra o cenário pós-apocalíptico traçado pelo escritor José Eduardo Agualusa em seu romance “Os Vivos e os Outros”. Em determinado ponto da história, depois de dias de chuvas torrenciais “apagando” quase tudo, o céu clareia e resta apenas lama. Ao caminhar pelos escombros, o chefe da polícia local vê dois meninos escavando o lodo e pergunta o que estão fazendo. Um dos meninos encosta a pá e responde, desafiador: “Estamos a desenterrar o país, chefe”. O policial, debochado, deseja boa sorte e comenta rindo: “Vão ter de cavar pelo resto da vida”.
É a mesma impressão que tenho às vezes ao ver o que acontece no comando do Brasil. A diferença é que a chuva não para. A lama e o lodo são mais intensos a cada dia.
Ainda assim, há muita gente cavando. E as Olimpíadas de Tóquio foram um belo exemplo dessas gerações de brasileiros e brasileiras exímios na arte da escavação. O Brasil de verdade, que vai muito além do cercadinho, é esse de Ítalo, Rebeca, Isaquias, Ana Marcela, Hebert, Rayssa e tantos e tantas atletas incríveis, que dedicam vidas inteiras a mostrar que a construção de longo prazo é uma luta diária. Cada pá de terra retirada faz diferença. O Brasil se desenterra no braço e no grito de toda essa gente fantástica que não abaixa a cabeça pra covardia que tenta silenciar as raízes do País. Não é o patriotismo de conveniência, mas o que vem da alma.
É esse verde e amarelo que precisa retomar as rédeas nacionais.
Não a gola cara dos importados nas estátuas e avenidas, mas o suor real de quem trabalha de verdade sem descanso pra erguer os dias.
Não a preguiça e a bravata de quem esbraveja sem qualquer projeto de país, mas sim a determinação de quem projeta a essência do Brasil pelo mundo.
Seja no cinema, nas artes, nos esportes ou onde for, pessoas que cultuam com respeito e dignidade a nossa história, e elevam com coragem e persistência a identidade brasileira, em toda sua beleza, força e diversidade.
São elas que representam a nação e todo o paradoxo que se impõe em tempos tão difíceis. Ao mesmo tempo em que precisamos do silêncio em respeito ao luto nacional, precisamos do grito dos brasileiros pra desenterrar a lama que nos jogam.
Uma mistura que se vê com alguma sutileza nos versos do poeta chileno Pablo Neruda, no poema “Peço Silêncio”: “Porém, por que peço silêncio / não creiam que vou morrer: / passa comigo o contrário: / sucede que vou viver”.
Esse grito silencioso, que vem preso no peito de tanta gente, vai redesenhar o nosso destino como nação. O Brasil está vivíssimo, no silêncio e no grito. Nos pódios ou nas plateias, a maioria continua cavando. O desenterro uma hora chega.
Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro.