A máscara cai: por que contamos (e convivemos com) tantas mentiras por aí?
Nossa colunista investiga quais os objetivos sociais da mentira e como podemos lidar melhor com quem distorce o mundo a torto e a direito

O Natal passado de uma paciente minha, uma daquelas almas honestas que enxergam as incongruências das pessoas com a precisão de um detector de mentiras humano, foi mais uma prova de fogo do que um jantar festivo. Entre atacar o chester e a chegada do panetone, ela se pegou ouvindo uma convidada descrever sua “vida perfeita”, incluindo marido de sucesso, filho incrível e rotina divertidíssima. Mas, claro, como qualquer boa narradora socialmente treinada, a tal convidada omitiu que o marido não havia “mudado de área”, mas sido demitido; que o filho, sempre descrito como um gênio, não estava em um ano sabático estratégico, mas completamente perdido emocionalmente; e que ela mesma, longe de estar “aproveitando a vida”, encontrava-se à beira de um colapso porque sua eterna necessidade de competir com os outros finalmente a esmagara.
Para minha paciente, presenciar essa cena foi draining — emocionalmente exaustivo, como dizem os americanos com uma precisão invejável. Enquanto os outros à mesa balançavam a cabeça e sorriam educadamente para os floreios narrativos da mulher, minha paciente só conseguia pensar: “Eu sei que você está mentindo, e eu sei que você sabe que eu sei”.
Essa capacidade de enxergar atrás das máscaras, que para muitos é uma habilidade admirável, na prática pode ser uma receita para o isolamento e a frustração. Afinal, o que fazer quando os outros insistem em encenar um roteiro que não cola, ou quando você parece ser a única a perceber (ou se importar) que o rei está nu?
Bella DePaulo, uma das principais pesquisadoras sobre o tema das mentiras, traz insights fascinantes sobre como elas permeiam nosso cotidiano. Segundo ela, mentimos, em média, uma ou duas vezes por dia, e muitas dessas mentiras têm um propósito claro: moldar a maneira como os outros nos percebem.
Em seu estudo clássico Lying in Everyday Life, DePaulo e colegas mostraram que essas mentiras não são apenas maneiras de trapacear, mas ferramentas para gerenciar nossa autoimagem. Mentimos para nos sentir mais competentes, interessantes ou felizes — ou, como no caso daquela convidada do Natal, para preservar perante nós mesmos uma fachada de perfeição.
DePaulo também identificou um padrão que conhecemos: tendemos a fingir e vazar mais “mentiras cotidianas” para estranhos do que para pessoas próximas. Exemplos clássicos incluem elogiar aquele bolo seco na casa de um conhecido com um “Nossa, tá incrível!”, enquanto reza para não precisar repetir. Ou usar o clássico “Desculpa, só vi sua mensagem agora” como escape de uma situação inconveniente.
Isso para não mencionar as redes sociais, onde as mentirinhas assumem proporções criativas. A ida à Disney vira uma “experiência mágica” (mesmo que tenha sido marcada por filas intermináveis, crianças chorando e uma briga com o GPS que fez a viagem durar o dobro do tempo). A foto do casal sorrindo no jantar vira prova de um relacionamento perfeito — descartando a briga de meia hora sobre onde comer. Já o post “Acordei inspirado às 5h para correr” convenientemente omite que essa foi a primeira e única vez no ano em que a atividade física aconteceu.
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Essas pequenas inverdades, que incluem omissões e exageros, estão em toda parte.
Acontece que essas mentiras e fingimentos sociais não são universais em sua aceitação. Para algumas pessoas, representam um padrão de superficialidade que compromete a autenticidade nas relações. Aqueles que têm um compromisso profundo com a sinceridade, como minha paciente, tendem a enxergar essas interações como vazias, mais um teatro do que uma conexão genuína.
Para esses indivíduos, navegar em um mundo de camadas de dissimulação não é apenas desconfortável — é exasperante, como assistir a um filme em que o áudio e as legendas estão fora de sincronia.
Robert Trivers, um dos grandes teóricos da psicologia evolucionista, argumenta que o mecanismo das mentiras tem raízes profundas. Em seu famoso livro The Folly of Fools: The Logic of Deceit and Self-Deception in Human Life, ele demonstra que a capacidade de mentir — e de acreditar em mentiras — foi e é essencial para a nossa sobrevivência, particularmente se essas inverdades não forem descobertas pelos outros.
Desde os primórdios, esconder intenções ou emoções ajudou nossos ancestrais a evitar conflitos e a fortalecer alianças. Por outro lado, adverte ele, mentir com sucesso pode ser difícil, e há toda uma literatura sobre as microexpressões faciais e tons de voz que deixam rastros das mentiras.
Entra aí o comportamento de autoengano (self-deception). Afinal, se nem você realmente percebe que está mentindo, é menos provável que dê sinais que revelem a verdade. Essa teoria do autoengano sugere que a mente, de forma astuta, cria compartimentos: a verdade fica registrada em algum canto escondido do cérebro, enquanto o resto se encarrega de construir a fachada necessária para a interação social.
O objetivo principal é estratégico: manipular situações sociais, evitar conflitos e obter vantagens pessoais ou status dentro do grupo. Talvez seja isso que minha paciente tenha enxergado à mesa — não só uma convidada contando mentiras, mas alguém que acreditava piamente nelas.
O desafio para quem é radicalmente honesto é não apenas coexistir com a dissonância explícita nessas cenas sociais, mas também encontrar alguma maneira de lidar com o desconforto de assistir a tantas performances sem se trair no processo. Uma opção é simplesmente se calar, mantendo uma expressão impenetrável digna de uma esfinge (ou, como dizem os americanos, um “poker face”).
Outra é lançar perguntas estrategicamente sutis. O objetivo? Contornar o assunto com cuidado, iluminando as contradições sem confrontar diretamente. Mas essa é uma alternativa arriscada e que pode consumir muita energia.
Pode-se também tentar alinhar intenções com ações, uma forma de honestidade que considera o impacto social sem comprometer a integridade pessoal. Por exemplo, se um amigo lhe conta sobre uma péssima decisão, você não precisa (embora queira) responder algo como “Essa é a ideia mais idiota que já ouvi”. Quem sabe pode tentar algo mais construtivo: “Entendo por que você tomou essa decisão, mas talvez seja útil olhar para outros ângulos”. Não é preciso ignorar a verdade, mas também não é preciso usá-la como arma.
Talvez o segredo esteja em cultivar uma espécie de “realismo compassivo”, aceitando que a incongruência é parte essencial da condição humana, ao mesmo tempo em que se aprende a honrar a própria verdade sem se tornar insuportável para os outros. Afinal, reconhecer que vivemos num mundo de encenações sociais não significa que você precise fazer parte do elenco — e muito menos aplaudir de pé.
Para sair do jantar numa boa, a reflexão de minha paciente poderia rolar assim: “Quer saber? Essa performance merecia uma indicação ao Oscar… ou ao prêmio de roteiro adaptado”. Com essa suave abordagem, até as mentiras mais elaboradas podem ser encaradas como o que são: tentativas falhas, mas humanas, de navegar pelas complexidades da vida em sociedade.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia (EUA)