Uma das inúmeras boas decisões dos meus pais foi criar a mim e a meus irmãos rodeados de cachorros. Quando nasci, já tínhamos dois: Freud, um vira-lata esperto que roubava cuecas do varal, e Jung, um collie que era um verdadeiro lorde inglês. Desnecessário pontuar que eles não se davam muito bem (os cães, não meus pais).
Depois dessa “fase dos psicólogos” – que incluiu ainda Skinner, outro vira-lata, e Rogers, um dálmata que parecia ter um lado demoníaco -, passamos a batizá-los com nomes de figuras históricas e divindades: Átila, um setter irlandês que nos deixou cedo demais; Brutus, o doberman mais doce que já existiu, imortalizado em um livro infantil da minha mãe; Eros, outro doberman; Platão, o weimaraner fujão. Ah, e houve também a única figura feminina do canil, nossa suave setter Carina.
Atualmente, estamos na fase das danças e dos vizlas (raça húngara de porte médio e pelo curto), com o Tango, que ficou conosco por 12 anos, e o Samba, que nos alegra todos os dias.
A ligação profunda com cães não é algo novo na humanidade. Há milhares de anos, eles deixaram de ser apenas predadores rodeando nossas fogueiras e se tornaram companheiros inseparáveis, despertando uma conexão afetiva que só se amplia. Esse vínculo nos revela algo essencial sobre o olhar e a relação de apego – que são como o arroz e feijão das interações humanas, fundamentais para a ternura e a ajuda mútua.
O olhar é uma ferramenta poderosa na comunicação, ajudando a decifrar intenções e a construir laços afetivos. O famoso “olhar recíproco” entre mãe e bebê é a forma mais primária de apego social, suscitando altos níveis de oxitocina (o hormônio do vínculo) associados a um contato visual duradouro.
É um ciclo positivo que se retroalimenta: o cuidado da mãe ativa a oxitocina no bebê, que reforça o apego e aumenta o carinho da mãe. Para que isso funcione, é preciso reconhecimento mútuo – o que levou os estudos a focarem nas interações dentro da mesma espécie. E, surpreendentemente, cientistas descobriram algo semelhante na relação entre cães e seus donos.
Ligação entre espécies
Uma pesquisa publicada na Science revelou que, quando humanos e cães se olham nos olhos, ambos também experimentam um aumento nos níveis de oxitocina, intensificando a sensação de conexão. O estudo demonstrou inclusive que administrar de forma nasal oxitocina nos cães aumentava a frequência com que eles olhavam para os donos, o que, por sua vez, elevava os níveis de oxitocina nos humanos.
E assim como no caso dos bebês, esse ciclo de interação cria um “loop” positivo que reforça o vínculo entre humanos e cães, promovendo um estado emocional mais saudável para ambos. Não é à toa que muitos de nós tratam seus cachorros como bebês peludos. E, muito além da ciência, quem não se maravilhou com o amor transbordante que sente quando troca olhares com seu fiel amigo canino?
O impacto dos cães na saúde mental humana é fascinante e abrangente, englobando desde a redução de sintomas de estresse até o apoio em quadros mais graves. Estudos mostram que crianças hospitalizadas sentem menos ansiedade após interações com cães, enquanto veteranos de guerra apresentam uma significativa redução nos sintomas de transtorno de estresse pós-traumático com o apoio emocional dos bichos.
Os cães são capazes de detectar mudanças sutis no nosso comportamento, traduzindo essa percepção em oferecer conforto. A terapia assistida por cães tem demonstrado resultados positivos em pacientes com esclerose lateral amiotrófica (ELA), melhorando funções motoras e o estado psicológico. Da mesma forma, auxilia crianças e adolescentes com transtorno do espectro alcoólico fetal (síndrome resultante da exposição ao álcool do bebê durante o período de gestação) a ter menos sintomas de desatenção e oposição, além de melhorias em habilidades sociais e qualidade de vida.
Acompanho há anos no Facebook a página “Fight like a girl”, que traz as vivências e a rotina da mãe de uma jovem (Gracie) com uma rara doença autoimune. Descrevendo os desafios (e as alegrias) enfrentados pela família, fica evidente a importância da cadela (Auggie) no apoio à adolescente.
Como em vários outros casos (em quadros de epilepsia, por exemplo), Auggie percebe muito antes que todos quando há algo errado fisicamente com Gracie e consegue alertar a família. A companhia de Auggie em todos os espaços que a garota frequenta, de visitas hospitalares a colônia de férias e baile da escola, proporciona a Gracie muito mais segurança e qualidade de vida.
Dessa forma, não chega a ser surpreendente que idosos fragilizados e pessoas em luto muitas vezes encontram nos cães um suporte emocional mais reconfortante do que em familiares, amigos ou terapeutas. O participante de um estudo declarou: “Levaram meu cachorro ao hospital para me ver. Acho que isso provavelmente foi o divisor de águas entre entrar ou não em depressão”. Outra pessoa declarou: “Às vezes, quando caminhamos, falo com ele sobre o filho que perdi e ele não tem escolha a não ser ouvir, porque ele é um cachorro… um animal carinhoso e reconfortante”.
+ LEIA TAMBÉM: O que é a zooterapia?
Presentes à saúde
Os benefícios não param por aí. Ter um cachorro também nos incentiva a ser mais ativos. Não importa quão cansados estejamos, nossos amigos peludos sempre têm energia de sobra para pedir uma caminhada – e, se você já tentou resistir a um cachorro pedindo para passear, sabe que é uma batalha perdida.
Uma pesquisa com mais de 3 milhões de participantes mostrou que a vivência com cães está associada a uma redução de 24% no risco de mortalidade ao longo do tempo. A presença de um cachorro parece ser ainda mais benéfica para pessoas que passaram por eventos cardíacos, como a síndrome coronariana aguda, em que a redução do risco de morte chega a impressionantes 65%.
Um dos principais mecanismos por trás desse benefício é o aumento na atividade física proporcionado pelos passeios com os cães, o que ajuda a manter o coração saudável ao longo do tempo. Um estudo no Japão, que acompanhou mais de 11 mil pessoas por três anos, revelou que idosos proprietários de cães tinham menor chance de desenvolver doenças, provavelmente devido ao exercício físico regular promovido pela companhia dos animais.
Além do exercício, os cães nos propiciam algo nem sempre fácil de conseguir no mundo moderno: interações sociais. Quantas vezes já não lhe ocorreu ser parado por alguém num passeio querendo fazer carinho ou saber a raça do seu mascote? Cães são verdadeiros facilitadores sociais, conectando-nos com outras pessoas e ajudando a combater a solidão.
Mais do que isso, esses animais oferecem uma janela fascinante para a compreensão da cognição humana, especialmente por meio da sua inteligência social. Eles evoluíram para interpretar gestos , emoções e até resolver problemas de forma cooperativa — habilidades que pensávamos serem exclusivas dos seres humanos.
Os fortes laços emocionais que mantêm conosco compartilham processos neurobiológicos dos vínculos entre humanos, o que nos ajuda a entender como a cognição social se desenvolve. Em última análise, a relação entre humanos e cães transcende o simples afeto. Trata-se de uma conexão que impacta positivamente nossa saúde mental de diversas maneiras, desde a liberação de hormônios do bem-estar até a promoção de um estilo de vida mais ativo e social.
Ter um cachorro pode não ser a solução para todos os problemas do mundo, mas certamente torna nosso mundo interior muito mais leve, aprazível e feliz. Eu e o Samba assinamos embaixo.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia (EUA)