Fumou maconha e passou muito mal? Pode ser algo mais sério do que imagina
Uso frequente de cannabis pode induzir quadro por trás de vômitos intensos e cíclicos. Condição, pouco conhecida, começa a ganhar atenção dos especialistas

Síndrome de hiperêmese por canabinoides (SHC). Já ouviu falar? É provável que não, mas ela se refere a uma condição bastante desagradável causada pelo consumo prolongado de maconha. Descrita pela primeira vez na Austrália em 2004, a SHC tem sido cada vez mais reconhecida entre usuários crônicos de cannabis.
A SHC é caracterizada por episódios cíclicos de náusea intensa, vômitos persistentes e dor abdominal. Curiosamente, muitos usuários descobrem que os sintomas são temporariamente aliviados por banhos ou duchas quentes, o que leva ao comportamento compulsivo de passar longos períodos sob água quente. Esse alívio peculiar é uma das pistas para o diagnóstico.
Há evidências de que pequenas quantidades de maconha podem aliviar náuseas e vômitos em alguns contextos, como a administração controlada pacientes em quimioterapia. Por outro lado, o uso constante e em altas doses pode ter um efeito paradoxal, desencadeando a tal SHC.
A origem exata do quadro ainda não é completamente compreendida, mas acredita-se que envolva a desregulação dos receptores canabinoides no sistema nervoso central e no trato gastrointestinal. Em outras palavras, o que inicialmente ajuda a acalmar o estômago pode, eventualmente, fazer exatamente o oposto.
Alguns pesquisadores levantaram a hipótese de que pesticidas podem estar envolvidos nisso, mas não temos estudos suficientes confirmando a ideia.
O fato é que as consequências da SHC vão além do desconforto físico. Um estudo analisando dados de 2006 a 2013 mostrou que as visitas a emergências relacionadas a vômitos devido ao uso de cannabis aumentaram de 2,3 para 13,3 por 100.000 consultas. Além disso, os custos médicos relacionados e ajustados pela inflação subiram 68,5% no mesmo período.
Isso revela um impacto financeiro significativo, sobrecarregando os sistemas de saúde e destacando que as complicações não são tão simples quanto parecem à primeira vista.
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O impacto da condição pode ser tão grave que fatalidades relacionadas à SHC estão começando a ser descritos na literatura científica. Um estudo relatou casos fatais em usuários crônicos de cannabis que apresentaram episódios de náusea e vômitos cíclicos antes da morte, sem outras causas significativas identificadas nas autópsias.
Outro relato descreveu a morte de uma jovem de 22 anos devido a uma arritmia cardíaca fatal desencadeada por hipocalemia resultante de vômitos persistentes associados à síndrome. Além disso, casos em adolescentes também foram documentados, com sintomas semelhantes aos de adultos, destacando a necessidade de atenção precoce a essa condição em jovens usuários
No Brasil, a SHC ainda é raramente documentada, mas novos casos têm sido relatados em diversas regiões do país. Um exemplo foi o de uma paciente gestante de 19 anos, usuária crônica de maconha, que apresentou náuseas e vômitos intensos não responsivos a antieméticos (medicamentos para vômito) tradicionais, associados a dor abdominal e compulsão por banhos quentes.
O diagnóstico da SHC por aqui enfrenta desafios, já que os sintomas são frequentemente confundidos com outras condições gastrointestinais. Além disso, o estigma em torno do uso de cannabis faz com que muitos pacientes omitam informações essenciais sobre seu consumo, dificultando a identificação da síndrome.
O que realmente parece funcionar para tratar a SHC é parar completamente o uso. Após a cessação, os sintomas geralmente desaparecem em dias ou semanas. Medicamentos como haloperidol e capsaicina tópica podem oferecer alívio temporário, mas não resolvem a causa subjacente.
Durante as crises agudas, hidratação intravenosa e controle de náuseas ajudam a reduzir o desconforto, mas a melhora sustentada só ocorre com a interrupção definitiva do consumo de cannabis.
Estudos mais recentes tentam entender por que alguns do usuários crônicos de cannabis têm mais chance de desenvolver a síndrome do que outros – é possível que aspectos genéticos tenham um papel importante.
Com o uso de maconha crescendo mundo afora, tanto para fins medicinais quanto recreativos, é bom que usuários e profissionais de saúde estejam cientes da existência da SHC. Identificar os sintomas logo de cara pode evitar muita dor de cabeça (e de barriga). Afinal, o que muitos enxergam como uma alternativa “natural” pode virar um verdadeiro pesadelo de banhos intermináveis e outras consequências bem piores.
Se você quer entender mais sobre essa condição emergente, vale conferir o webinar Cannabinoid Hyperemesis Syndrome (CHS): Understanding an Emerging Public Health Challenge, promovido pela Addiction Technology Transfer Center (ATTC), Universidade de Washington e o Drug and Alcohol Institute’s Cannabis Education and Research Program, que são centros de excelência na área de pesquisa sobre maconha. Esse evento, que será realizado no dia 19 de março em inglês, vai explorar as causas, sintomas, desafios diagnósticos e abordagens terapêuticas da síndrome.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp e autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia, nos EUA. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_