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A psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky reflete sobre saúde mental e suas conexões com a nossa sociedade
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Quando o uso de maconha vira um problema de saúde

Finalizando uma série de artigos sobre o universo da cannabis, colunista explica em que situações o consumo recreativo desperta preocupação

Por Ilana Pinsky
Atualizado em 13 Maio 2024, 21h00 - Publicado em 22 set 2023, 08h09

A maconha é uma das drogas mais utilizadas no mundo. Fato! Os índices variam muito – assim como o estágio relacionado à legalização da substância em cada lugar. No Brasil, aproximadamente 5% dos estudantes de 13 a 17 anos relataram ter usado maconha no último mês, quando questionados a respeito. Os números chegam a quase 9% entre adolescentes de 16 e 17 anos.

O uso medicamentoso de extratos provenientes da planta tem aberto uma área importante de pesquisa e prática clínica, como já discuti neste espaço. Acompanhando esses desenvolvimentos, também temos visto ruir alguns mitos equivocados a respeito, como o de que a cannabis é sempre uma porta de entrada para o uso de outras substâncias, resultando quase sempre em morte ou prisão.

Por outro lado, houve uma acentuada normalização do consumo, respaldada na incorreta percepção de que seu uso é desprovido de consequências negativas.

É importante pontuar que o uso de maconha, especialmente para fins recreativos, pode, sim, estar associado a problemas de saúde no futuro. O impacto é arriscado sobretudo para o cérebro em formação, o que demanda um maior cuidado com os jovens.

Nosso cérebro demora um bocado de tempo para se desenvolver completamente. A porção pré-frontal do órgão, responsável pela performance das chamadas funções executivas, controlando o processo de tomada de decisão, avaliação das situações e impulsividade, ainda está em pleno processo de construção até por volta dos 25 anos de idade.

Durante esse período de desenvolvimento, o órgão não é apenas vulnerável à maconha, mas também a outras drogas (incluindo o álcool). E é justamente durante a adolescência e o início da vida adulta que somos mais expostos a substâncias de abuso.

Há evidências substanciais de que o uso de maconha entre adolescentes está associado com piora no aprendizado. O consumo prejudica as funções cognitivas em vários níveis, incluindo a capacidade de planejar, organizar, resolver problemas, a rapidez do processamento de informações e a habilidade de tomar decisões e a memória (verbal e visual).

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O uso, particularmente quando mais frequente e pesado, pode reduzir a competência do indivíduo de controlar emoções e o comportamento. A impulsividade, que muitas vezes já é significativa entre adolescentes e jovens adultos, é um dos aspectos mais críticos nessa fase. Se pensarmos que é justamente durante a adolescência e o início da vida adulta que se completa a parte mais importante dos estudos e se tomam importantes decisões para o futuro, a diminuição da capacidade cognitiva e decisória e o aumento da impulsividade podem ter um impacto central para a vida da pessoa.

Além disso, a exposição à maconha ao longo do tempo pode afetar a estrutura e algumas funções cerebrais. Vejamos o que diz a pesquisadora Staci Gruber, professora da Universidade Harvard e diretora do Marijuana Investigations for Neuroscientific Discovery (MIND), nos Estados Unidos. Ela e sua equipe estudam o impacto da maconha no cérebro usando avaliações neurocognitivas, clínicas e técnicas de imagem. Algumas de suas pesquisas analisam as imagens do cérebro de adolescentes ao realizar tarefas, o que permite verificar como o córtex funciona quando está “trabalhando”.

Seus estudos apontam que o consumo de maconha entre adolescentes está relacionado a uma redução da integridade das fibras da matéria branca do cérebro (que é a parte que conecta as regiões do órgão). Essa restrição, por sua vez, está ligada a maiores níveis de impulsividade.

Um aspecto muito importante da série de estudos que seu laboratório produz é a percepção de que esses indícios são muito mais evidentes entre os adolescentes que começaram a usar maconha mais cedo – antes dos 16 anos, os chamados early onset users (usuários de início precoce). Quanto mais cedo o início, maior a chance de usar a droga de forma mais frequente e pesada e desenvolver dependência.

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Maconha pode viciar?

Tem gente que não acredita que maconha possa causar dependência, embora o diagnóstico seja relativamente frequente. Nos Estados Unidos, pesquisas apontam que cerca de 10 a 20% dos usuários de maconha desenvolvem transtorno de abuso da droga. Ser dependente de maconha basicamente significa que a droga passa a ser algo central na vida do individuo, que apresenta então dificuldades de suspender o uso mesmo que ele esteja causando problemas sociais, familiares, profissionais…

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O transtorno gerado pelo uso de maconha afeta a qualidade de vida, podendo desencadear problemas crônicos de sono e de memória, limitar a produtividade, abalar relacionamentos e aprofundar dificuldades financeiras. Não é incomum ver, entre dependentes de maconha que tentam parar de usar a substância, relatos de aumento de irritabilidade, ansiedade, raiva, humor deprimido, dores de estômago – todos sintomas de crise de abstinência. E, com o aumento dos usuários de cannabis de forma geral, há um consequente aumento no número de pessoas dependentes.

+ LEIA TAMBÉM: O que esperar da cannabis medicinal?

Risco de psicose e esquizofrenia?

Para adolescentes e jovens adultos suscetíveis a comprometimento psiquiátrico grave, o consumo de maconha também tem o potencial de desencadear um primeiro episódio de psicose. Esse fato foi constatado por inúmeras pesquisas de alta qualidade.

De fato, o consumo de cannabis duplica o risco de desenvolvimento de uma perturbação psicótica em indivíduos vulneráveis. Se o uso for diário e de maconha de alta potência (veja a descrição desses produtos logo abaixo), o risco aumenta cinco vezes quando comparado à situação de indivíduos que não usam maconha.

Além disso, o uso de maconha após o início do transtorno psicótico piora os resultados clínicos, aumentando o risco de recaídas. Lembrando que, se a ocorrência de psicose relacionada ao uso de maconha é relativamente rara, quando ocorre pode ser devastadora para a vida das pessoas. E o argumento de que isso só acontece com pessoas vulneráveis é complicado pelo fato de que é muito difícil determinar a suscetabilidade a priori.

Uma outra linha de estudos que tem trazido importantes descobertas sobre a exposição precoce à maconha envolve o consumo da droga durante a gravidez. Assim como o consumo de álcool e tabaco durante a gestação, o uso de maconha também pode resultar em efeitos negativos para a criança. Estudos têm constatado que o uso pela gestante pode aumentar os riscos de parto antecipado e de bebês de baixo peso.

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Durante a infância e a adolescência, os resultados da exposição antes do nascimento podem incluir prejuízos cognitivos, de coordenação motora e de memória. Alguns desses achados foram confirmados recentemente no Adolescent Brain Cognitive Development Study (ABDC Study), que é o maior estudo longitudinal sobre o desenvolvimento do cérebro de crianças e adolescentes nos EUA.

Trata-se de um sofisticado (e bem financiado) estudo, que está seguindo mais de 11 000 crianças até a idade adulta e conta com 21 grandes universidades e institutos como parceiros. Um artigo de 2023 encontrou diferenças no grau de cognição (especificamente em habilidades viso-espaciais) e no desenvolvimento do cérebro (crescimento do volume intracraniano) na amostra de adolescentes que havia tido exposição perinatal.

Um complicador para todos esses elementos é o fato de que a potência da maconha, ou seja, a percentagem de THC (tetrahidrocarbinol, o principal componente psicoativo da cannabis) da droga tem aumentado, por vezes exponencialmente, nos últimos anos. Não temos esse dado de forma detalhada para o Brasil, mas isso é claro em países que legalizaram a maconha utilizando um modelo comercial voltado para o lucro, como os EUA e o Canadá.

A estimativa é que o aumento de THC no baseado comum nos EUA cresceu 250% – de cerca de 4% em 1993 a quase 14% em 2019. Além disso, foram produzidos (legalmente) novos produtos, chamados de “concentrates”. Essas versões, que chegam a níveis de THC de 85%, incluem ceras e óleos e são fumados (o ato de fumar concentrados é chamado de “dab” ou “dabbing”).

As pesquisas epidemiológicas no Canadá e nos EUA mostram que o dabbing e a utilização em geral de produtos com alta potência de THC tem se tornado cada vez mais popular. A preocupação dos pesquisadores e agentes de políticas públicas com esse aumento da potência da maconha fica clara em um simpósio organizado pelo Cannabis Education and Research Program, liderado pela pesquisadora Beatriz Carlini no Addictions, Drugs and Alcohol Institute da Universidade de Washington, que traz discussões sobre os riscos de curto e longo prazo dessa exposição.

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Orientações

A mensagem atual de saúde pública em relação ao uso da maconha para fins não médicos aponta para a seguinte direção: começar o consumo na adolescência e usar com frequência pode atrapalhar o desenvolvimento do cérebro do indivíduo. Não há clareza se as eventuais mudanças no cérebro em formação são permanentes ou temporárias.

Entre os potenciais danos relacionados ao consumo estão o aparecimento ou a piora de condições psiquiátricas graves (particularmente esquizofrenia), problemas cognitivos, impulsividade e deterioração de funções executivas.

A dependência de cannabis é algo real e pode trazer vários prejuízos para a vida das pessoas. E o uso de produtos de alta potência de THC é um agravante nessa história, assim como o consumo durante a gestação, o uso no início da adolescência ou durante atividades que exigem atenção, como dirigir.

Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora ligada à Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e professora da Unifesp e da Universidade Colúmbia (EUA)

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