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A carpintaria de Ricardo Piglia

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Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 13 ago 2018, 21h52 - Publicado em 9 out 2011, 10h59
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    Ricardo Piglia não parece ter a idade e a altura que tem. Quando fala de literatura, o baixinho de 70 anos mostra estatura e agilidade de raciocínio notáveis. Entre um aperto e outro que dá com uma das mãos no dedo mindinho da outra, cacoete que o acompanha sempre, ele fala com desenvoltura e prazer de seus temas diletos, o livro que está divulgando, o gênero detetivesco, Jorge Luis Borges, o alter-ego Emilio Renzi, a experiência de viver nos Estados Unidos, Jorge Luis Borges. O mestre argentino não precisa ser invocado pela reportagem: Piglia trata de trazê-lo à discussão, deixando clara a sua perfilhação ao estilo intelectual, ao mesmo tempo fantástico e cerebral, que fez escola a partir de Buenos Aires. Outros assuntos surgem na conversa, também, caso da sua relação com a arquitetura e as artes plásticas e de seu gosto por séries de TV. Nada escapa à observação do escritor, hoje um dos mais importantes da Argentina, onde voltou a morar em setembro, quando se aposentou da Universidade de Princeton (EUA).

    Piglia conversou com VEJA Meus Livros por cerca de uma hora. Na primeira parte da entrevista, logo abaixo, ele fala das transformações que vê a internet provocar na literatura, da sua relação com outras formas criação — como artes plásticas e arquitetura — e do bom momento que vive a TV americana, que acompanhou de perto nos anos em que lecionou em Princeton. Mais abaixo, ele conversa sobre Alvo Noturno, seu último romance lançado no Brasil, e do livro de contos em que está trabalhando, Histórias Pessoais.

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    Na Flip deste ano, a argentina Pola Oloxairac foi classificada como cerebral – um adjetivo que valeria para boa parte da literatura argentina. O senhor considera seus livros cerebrais? Sim, eu tendo a pensar meus livros usando a noção de arte conceitual. Me parece que certa literatura contemporânea está em diálogo com as experiências de arte conceitual, que não sei se podemos definir como cerebral ou como maneira de acessar o mundo artístico. Me parece que isso passa com Pola e também com Borges. De todo modo, romances se escrevem com palavras, e palavras têm cargas múltiplas, sentimentais e racionais, estamos lidando com materiais que são ao mesmo tempo uma coisa e outra. No caso de Pola, me parece que há uma intriga sobre as mulheres e o pensamento, porque as mulheres estão sempre associadas com a sexualidade e a emoção. Pola põe aí personagens femininos muito conectados ao mundo emocional, mas ao mesmo tempo iguais aos homens nas discussões teóricas. É lindo isso. No caso de Alvo Noturno, a questão que me interessava era a da aparência: que algo parece outra coisa, é um problema conceitual. Sempre há algo disso, no meu caso.

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    As artes plásticas o interessam como fonte criativa? Sim, eu tenho muitos amigos artistas e me inspiro muito neles. Tenho a sensação que a arte experimenta com maior intensidade que a literatura, depois de Duchamp, talvez, e Duchamp também era um escritor. Então, por um lado, a arte contemporânea tende a se cercar de certas questões que já estavam presentes em Borges e Valerie, entre outros. O que eu vejo é a possibilidade de definir uma obra antes de fazê-la, como um projeto. O mesmo se dá com os arquitetos, que projetam um objeto ficcional que logo será uma casa.

    Mas o senhor vê semelhanças entre o seu modo de criação e o de um arquiteto ou o de um artista plástico? Sim, me parece que há um momento prévio à materialidade. A arte tende à desmaterialização e cada vez mais se aproxima da vida no sentido de produzir efeitos artísticos sem precisar de um objeto.

    Mas esse é um projeto difícil… Sim, claro. É como se fosse o horizonte utópico da arte.

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    É como se, ao terminar de escrever um livro, ele já não lhe fosse palpável. Como saber se ele vai funcionar? Essa é a grande questão. Num determinado sentido, me parece que se trabalha no cruzamento da arte com a vida, da ficção com a realidade, do projeto com o objeto mesmo. E que se trabalha nesse limite. Não se deixa de lado o objeto ou a experiência real, mas essa reflexão se sobrepõe. No caso do romance, me parece que ele avança sobre o jornalismo, a não-ficção, sobre fatos reais, como se tratasse de estabelecer uma conexão entre a arte e a experiência real.

    Dar aula o ajudava a escrever? Não muito. Eu ensinei em Princeton de 1997 ao ano passado. Desde setembro deste ano, estou aposentado, como um boxeador aposentado (risos). Foi uma experiência linda dar aulas, mas agora preferi voltar a Buenos Aires. Eu não escrevia tanto nos EUA como gostaria, dar aulas tomava muito tempo. Além disso, dar aulas lá pressupunha viver nos Estados Unidos por longas temporadas, mudar minha vida. Durante um tempo, nos anos 1960, fui editor de uma coleção de livros policias, fiz crítica de cinema. Mas prefiro trabalhar com calma, sem urgência.

    O senhor trabalhou por anos em Princeton. Acompanhou o bom momento da TV americana, que parece estar deixando o cinema para trás?
    Uma das coisas mais interessantes de viver nos Estados Unidos foi descobrir esse mundo da TV paga e das séries antes da Argentina, onde elas só chegariam depois. Havia muita oferta na TV americana. Fiquei logo fascinado pelos Simpsons, era época do Reagan, e aquela família tão contrária à lógica do estado era extraordinária. Também adorei Os Sopranos, Twin Peaks, de David Lynch. Me parecem que os melhores roteiristas estão agora escrevendo séries. São muito criativos. E me parece que o cinema corre atrás disso. O cinema ficcional está em certo sentido atrasado em relação a dois aspectos: o primeiro é esse, das séries de ficção, e depois me parece que há um grande desenvolvimento do documentário, que está como que na vanguarda da indústria.

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    Das séries mais recentes, alguma chamou a sua atenção? Também gostei muito de Lost. Me parece muito próximo de Lucrécia Martel, uma diretora fantástica da Argentina. Há elementos de literatura fantástica nessa série tão popular, se pensarem na ideia de uma ilha onde se chega e da qual não se pode sair. Há elementos de alta cultura que se cruzam com outros de cultura popular. Também gostei do Arquivo X, era ótimo, e também fantástico. Havia liberdade e experimentação, coisas que estão muito menos presentes no cinema, hoje mais estereotipado. A cultura americana é um grande acontecimento. A política de estado incomoda a todos, mas a cultura é muito poderosa e livre, uma cultura muito ativa. Digo em Nova York, em São Francisco. Há aí uma atitude, nas ruas, nas roupas das pessoas, que não corresponde ao modelo político do estado. De modo que essa se trata de uma sociedade complexa e muito interessante.

    O senhor tem uma teoria já antiga sobre a obsolescência das mídias: que, quando uma mídia se torna obsoleta, adquire liberdade criativa. Fazendo o raciocínio inverso, as novas plataformas, como os tablets, podem rejuvenescer o romance? Acho que o gênero que está se renovando hoje é o conto, a forma breve, que se adapta mais facilmente à circulação rápida da internet, mesmo em redes sociais como o Facebook. Há uma poética da brevidade na internet, mas o Twitter já seria um exercício extremo. Essa poética influencia a produção atual. Os contos tendem a ficar cada vez mais curtos e a se tornar mais populares entre os jovens. Em paralelo, o romance tende hoje a trabalhar com materiais reais. Mas a maior popularidade do conto não proporciona experimentações. Não há um Joyce nos contos. O mais perto de uma experimentação seria Borges, mas ele é um contista muito clássico. Todas as histórias têm um final claro. No meio, sim, ele inova, coloca coisas que não eram usadas nos contos, mundos imaginários, países estranhos, mas na forma o conto de Borges é bastante clássico.

    Por falar em Borges, e já de olho em Alvo Noturno, seu romance lançado há pouco no Brasil, vocês têm em comum o gosto pelo detetivesco, comum a muitos escritores argentinos. Por que esse gosto pelo policial na Argentina? Borges contribuiu muito para a difusão da literatura policial na Argentina. Ele começou a defender o gênero nos anos 1930, quando era considerado bastante secundário. Fazendo uma brincadeira, eu poderia dizer que a Argentina se aproximou do gênero policial. É uma sociedade, como muitas sociedades modernas, que fazem do crime uma janela, um modo de ver a realidade.

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