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A solidão é uma soma

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Por Lygia Roncel
Atualizado em 13 ago 2018, 17h43 - Publicado em 25 jan 2013, 09h00

paloma_vidal_620Mar Azul (Rocco, 176 páginas, R$ 29,50), o quarto livro e segundo romance de Paloma Vidal, é um livro sobre memória, mas também sobre solidão, busca, desamparo, medo. Ou sobre um espaço apertado onde tudo isso consegue transitar em silêncio, em uma série de desencontros. Em Mar Azul, o silêncio é nomeado o tempo todo, o silêncio é o momento em que tudo é dito (“meus silêncios às vezes pareciam eloquentes”) e em que as coisas acontecem (“foi quando ficamos pela primeira vez em silêncio que percebi que havia amor”). E é a matéria de que parece feita a protagonista, que nem sequer tem um nome. O silêncio é, assim, também um personagem do romance, como a solidão, que parece tanto uma condição imposta à protagonista, uma órfã, como uma opção dela.

O livro começa e termina com uma série de diálogos entre a personagem e sua única amiga, Vicky, travados na adolescência de ambas em Buenos Aires. São conversas bobas que lembram seriados adolescentes, capazes de angustiar o leitor. Na verdade, a proposta da autora é interessante, embora se alongue demais: entregar pistas da história e dos personagens por meio de diálogos diretos, aparentemente (mas só aparentemente) escolhidos ao acaso.  É deixar que as personagens falem por si mesmas. Quarenta páginas depois, desaparecem as meninas e os travessões e quem entra em cena é uma senhora solitária, beirando os 70.

O que desde o começo sabemos é que a mãe da protagonista está morta e o pai é um homem misterioso e ausente que frequenta reuniões clandestinas sobre política. Certo dia, ele deixa a filha aos cuidados de uma vizinha, a mãe de Vicky, e abandona a casa onde vivem. O ano é 1956, período de ditadura e repressão na Argentina. No ano anterior, um golpe militar – a denominada Revolução Libertadora – havia tirado o presidente Juan Domingo Perón do poder e imposto o autoritarismo de Pedro Eugenio Aramburu. O destino do pai, que era engenheiro, apontou então para o Brasil, que em 1956 tinha Juscelino Kubitschek na Presidência, com a meta de erguer uma nova para o país. A empreitada precisava de engenheiros, e o pai foi para lá, de onde se comunicaria com a filha, nos vinte anos seguidos, por cartas datilografadas.

Duas décadas depois da partida do pai, ela e Vicky, já adultas, dividem um apartamento. Vicky é militante política e desaparece em circunstâncias misteriosas, num episódio que pode ter a participação do ex-namorado da protagonista, um rapaz manipulador e possessivo que frequentou o colégio militar e sempre deixou Vicky ressabiada. Com um misto de medo e culpa, três meses depois do sumiço da amiga a protagonista sobe num ônibus rumo ao Brasil, atrás do pai. Na poltrona ao lado, senta-se Luis, um desconhecido com o qual compartilha uma solidão a dois e consegue estabelecer algo profundo, mesmo que passageiro. Luis desce no sul, mas ela prefere seguir viagem na esperança de um encontro com o pai. Telefona para o número que tem há anos anotado num papel, ele atende, mas a conversa não flui e é entremeada de silêncio e de uma distância que não é mais física, uma distância que já se impôs como parte daquela relação. O encontro não acontece e ela fica pelo caminho, se estabelece numa cidade costeira (o Rio de Janeiro, talvez), o que logicamente não é uma escolha gratuita, já que o mar, como sugere o título, tem uma importância crucial.

mar_azul_capaAnos depois, na velhice, ela mora ainda na mesma cidade, num condomínio a uma quadra da praia, e recebe uma ligação sobre a morte do pai. Ela voa para Brasília e o encontro, embora tardio, enfim acontece. Na quitinete em que ele morava, há apenas uma caixa de papelão cheia de cadernos em que ele, desmemoriado, escreveu nos últimos anos de vida e nos quais ela tem esperança de resgatá-lo. Dedica-se então à leitura dos cadernos e, no verso das páginas, escreve uma espécie de diário da sua rotina sem graça de professora aposentada, sem filhos nem marido, e das lembranças do passado que vêm à mente. Nas folhas, a sua vida e a do pai se sobrepõem e se sobrepõem também os tempos, o passado e o presente de cada um: um homem velho, solitário e doente cuja memória se vai deteriorando, e uma senhora solitária e também doente, no limiar entre o querer e o não querer lembrar. Nas linhas dos cadernos, pai e filha se confundem como o passado e o presente. A certa altura, ela já se vê preenchendo os espaços vazios que o pai deixara, como se brincasse de ser ele.

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À medida que avança em sua leitura, vêm à tona as lembranças da infância, de quando na companhia do pai, numa viagem, viu o mar pela primeira vez. É ali que ela quer se prender, é aquele mar que ela quer resgatar. O mar é uma metáfora múltipla da infância, do pai, da espera, é a sua conexão com as emoções de antes e com a sensação de amparo que só a água consegue lhe oferecer. “Será ele uma espécie de memória?”, ela se pergunta. O fato de matricular-se agora, já velha, na natação é também uma forma de retomar resgate de quando frequentava com o pai uma piscina. Ela confessa: “Desde que recomecei a nadar, a lembrança é mais palpável”. O mergulho é também no passado.

É nas entrelinhas que Mar Azul se constrói. O que às vezes pode parecer sem importância ou fortuito mais adiante se descobre ser uma pista, uma das muitas que, ao sabor das lembranças, fazem as peças bagunçadas de toda uma vida se encaixar. Ela própria, a personagem, parece desencaixada, desde a infância e adolescência no colégio religioso, depois ao morar não na sua casa mas na da amiga, e, mais tarde, num país que não é o seu.

Há uma história que se escreve, sim, por linhas tortas, num contínuo vaivém o tempo todo, e o leitor às vezes precisa voltar algumas páginas para buscar uma ou outra informação que passou despercebida. Um choro de bebê que a personagem ouve na primeira metade do livro, por exemplo, é uma das muitas pistas para a questão mal resolvida da maternidade que vai se impondo aos poucos. A passagem, na adolescência, em que a personagem diz estar lendo Cuardernos de Infancia também não é fortuita. Cuardernos de Infancia é um livro de memórias publicado em 1937 por Norah Lange (1906-1972), uma argentina de Buenos Aires que assim como a protagonista escreve sobre sua infância também. O pai é, veja só, um engenheiro misterioso dado a escrever cartas, e ela precisa de repente lidar com a morte dele. Em certa medida, por algumas coincidências, Mar Azul dialoga com o livro de Norah Lange, mas se distancia largamente dele para seguir um outro rumo.

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A escrita de Paloma Vidal é simples, clara, ágil, e até intuitiva, do tipo que não se preocupa em elaborar demais, em procurar a palavra ou frase exata. Não se detém em descrições nem em metáforas para poder seguir adiante, fluir, desprender-se depressa da mão. O livro todo é composto de cinquenta fragmentos, capítulos curtíssimos de duas a quatro páginas, em que os dias passam rápido, permeados de afazeres banais, lembranças, interrogações e sonhos. Foi feito mesmo para parecer um diário, escrito grande preocupação estética.

Paloma Vidal é, também ela, uma argentina que vive no Brasil. Chegou ao país aos 2 anos e, portanto, fala e escreve português como brasileira. Hoje, aos 37, mora em São Paulo, depois de muitos anos no Rio de Janeiro. Entretanto, o grau de relação entre a vida da autora e a da personagem da sua obra talvez seja menor, bem menor, do que aquele que pode unir o leitor e o romance, se um se identificar com a solidão e o desamparo que traz o outro. E não é difíciç. Mar Azul representa um pouco de todos nós – sempre sozinhos, mesmo quando não parecemos sós.

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