Quando a psicanalista Betty Milan foi convidada a escrever sobre o amor, no longínquo 1983, o mundo era outro. O Brasil vivia os últimos momentos de uma ditadura militar, já um tanto frouxa, é verdade, mas a mentalidade, para resgatar um termo pouco usado, era ainda muito machista. Não que hoje não o seja, mas a questão de gênero, na ordem do dia, vem provocando uma mudança social perceptível – e combustível para debates acalorados. Se hoje é assim, há 35 anos não poderia ser diferente. Ao bater no machismo e falar sem pudores sobre como o desejo pode mudar de objeto em O que É o Amor (Record), livro que relança agora, Betty foi alvo de duras críticas – algumas, verdadeiras pancadas, desferidas especialmente por homens. De lá para cá, o mundo pode ter mudado, mas o amor, em sua essência, não, diz a psicanalista. Por isso, para essa que chama de a “edição definitiva” de O que É o Amor, ela fez poucas alterações no texto original e apenas apôs uma breve introdução. O machismo, afirma, ainda precisa ser combatido. “Chegou a hora do ‘diga não’”, defende Betty, para quem é difícil conceituar o amor, que se quer eterno, “mas tem um pavio apagador”, como dira o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso. E se quer livre. Mas ser livre “implica suportar a solidão”. O amor, definitivamente, “não é para todo mundo”. Leia abaixo a entrevista de Betty Milan a VEJA :
Na introdução da edição definitiva de O que É o Amor, de 1983, você diz que “o vento libertário de Maio de 68 ainda soprava nos anos 80”. Esse vento sopra hoje ou está mais para brisa? O vento libertário não deixou de soprar. Não tem volta. O problema é que as pessoas não sabem o que fazer com a liberdade. Liberdade pressupõe a possibilidade de dizer não, ou seja, de escolher e de impor limites. Nós não somos educados para ser livres, só para obedecer. Por isso, a transgressão é tão valorizada e o assédio é tão frequente. Só os homens livres podem aceitar a liberdade feminina e só eles são capazes de amor. O verdadeiro amor sempre foi uma joia rara. Requer a generosidade e suporta a espera. Um bom exemplo disso está na Odisseia. Penélope espera Ulisses, durante toda a errância dele, espera castamente.
No livro, a senhora afirma que o sexo é “uma forma de interditar o amor, fazer de nós puritanos ao contrário”. O amor ou a forma como amamos mudou? Hoje valorizamos mais o sexo? O amor implica compromisso. O sexo, não. Como diz a Rita Lee, o amor é um livro, sexo é esporte. Nós, hoje, somos mais imediatistas e consumistas do que nunca, mais propensos a valorizar o sexo independentemente do amor. Para o gozo sexual, é possível ter mais de um parceiro. Já no amor, é diferente. O amado é um ser único, ele é um outro que não é inteiramente outro, no qual eu me espelho. O puritanismo, ao contrário, faz frente à obrigação de transar, que surgiu com a revolução sexual dos anos 1960. O puritanismo interdita o sexo. O contrário da interdição é a obrigação. O difícil mesmo é ser livre. Isso implica suportar a solidão.
Na França, ao contrário dos Estados Unidos, sempre houve uma grande liberdade sexual. Trata-se de um indício de civilidade
O amor é indissociável do sexo? O sexo entre os que se amam verdadeiramente é a maior fonte de contentamento. Freud diz isso e não há como discordar. Agora, o amor platônico existe e o sexo pode ser contrário a ele. Conto no meu livro a história de Baudelaire, que tem uma concubina, chamada Jeanne, mulata viciada no álcool e nas drogas, “um inferno”. A mulher que ele cultua se chama Apollonie, uma loura amiga das letras e das artes. Sem revelar a sua identidade, Baudelaire envia poemas e bilhetes para Apollonie. Ele a trata de mui bela, mui boa e mui cara, Anjo da guarda, Musa e Madonna, celebra o amor ideal, desinteressado e respeitoso. Durante cinco anos, tudo se passa anonimamente. Até a publicação de As Flores do Mal, um livro de sucesso e provocador de escândalo. No livro, estão os poemas que Baudelaire enviou para Apollonie, que então se entrega a ele. A decepção do poeta é completa — “Há alguns dias”, escreve ele, “você era uma divindade, o que era cômodo, belo, tão inviolável… agora, você é mulher”. Apollonie, a mulher idolatrada, era uma “carne espiritual” e não, como Jeanne, feita para o gozo desta terra.
E o ódio, anda mesmo junto com o amor? O amor pode virar ódio. A substituição do amor pelo ódio é comum, como se o ódio fosse a cara-metade do amor. Isso acontece porque o amado é a condição do ser do amante, que não suporta a separação. Se o outro é a condição do meu ser, se para existir eu dependo dele, é óbvio que, se o outro não me quiser, eu tendo a passar do amor ao ódio. O amante não suporta a recusa e, por isso, o crime passional, como em Shakespeare. Quando Otelo se convence, erradamente, de que Desdêmona o trai, ele diz: “Vou matá-la… Maldita seja ela a partir de agora. Que apodreça. Que desapareça. Desdêmona não viverá. Meu coração virou pedra. Bato nele e ele machuca minha mão”.
Liberdade pressupõe a possibilidade de dizer não, ou seja, de escolher. (…) O difícil mesmo é ser livre. Isso implica suportar a solidão
Como a senhora teve o insight de distinguir a paixão do amor da paixão do brincar, que seria tipicamente brasileira? Foi de fato um insight que eu tive por ser interlocutora do carnavalesco Joãozinho Trinta. Ele dizia que a verdadeira cultura do Brasil é a cultura que flui através do brincar. Cada cultura tem a sua característica. Na França, o que prevalece é a noção de direito, le droit. A criança cresce ouvindo “tu as le droit” (“você tem o direito”), “tu n’as pas le droit” (“você não tem o direito”). Na Espanha, o que conta é a honra, el honor. Os ingleses valorizam sobretudo o humor, the humor. Nós temos o brincar, que é um valor civilizatório e nada tem a ver com o sacanear, que é o uso da lei para lesar o próximo.
Como o brasileiro desenvolveu essa relação particular com o amor? Fui encontrar Gilberto Freyre no Recife para saber qual a origem da cultura do brincar. Me permito citar o que ele me disse e foi publicado no meu livro A Força da Palavra. “O brincar veio sobretudo do negro, que é um extrovertido… O negro é, mais do que o euro-português, mais do que o ameríndio de origem asiática e não tropical, o verdadeiro filho do trópico… De modo que, no Brasil, ele não veio para um meio estranho, veio para um meio ao qual estava predisposto… O negro transpira pelo corpo inteiro. Transpirando pelo corpo inteiro, ele é extrovertidamente feliz no seu modo de respirar o trópico.” Para saber mais, seria necessário fazer uma pesquisa. O fato é que o nosso herói, Macunaíma, brincava que mais brincava com a sua amada Ci…
Há quem diga que a paixão precede o amor. Eles são, de fato, coisas distintas? Como defini-las e entender a relação entre elas? O amor é, na verdade, uma das três paixões humanas. As outras duas são a paixão do ódio e a da ignorância. As pessoas separam a paixão e o amor, considerando que a paixão é vapt vupt, passageira, enquanto o amor é duradouro. O amor se quer eterno. Os que se amam verdadeiramente são almas gêmeas. Não concebem o afastamento, preferem até morrer a se separar. A história de Romeu e Julieta, a grande peça de Shakespeare sobre o amor. Imaginando que Julieta está morta, Romeu toma um veneno e morre. Julieta, que não estava morta, se suicida com o punhal dele. É isso. Há muitos exemplos. Um deles é o de Mariana Alcoforado, personagem de As Cartas da Religiosa Portuguesa, que prefere morrer a ficar sem o amado.
A diferença entre o amor e a paixão pode em alguma medida explicar a grande troca de parceiros hoje? A troca de parceiros tem a ver com a liberação sexual e a desvalorização do sentimento amoroso. Os trovadores que nós temos hoje no Brasil são os músicos e o maior deles é Roberto Carlos. Ele não é o “rei” por acaso. Roberto ama o amor como ninguém e a sua amada para todo o sempre, canta com essa força na alma. Contrariando a atualidade, ele diz em alto e bom som que “o amor é importante”, “levanta as águas do oceano”, que “nem o céu, nem as estrelas, nem mesmo o mar ou infinito é mais bonito”.
A monogamia é uma ameaça ao amor? Não é. O amor não é para todo mundo.
O casamento ainda faz sentido em um momento em que a sociedade experimenta outras formas de relação, como o poliamor? O ser amado é único, embora ele não seja eterno. O amor se quer eterno, mas, como diz Zé Celso, ele tem “um pavio apagador”. O amado é unico porque ele é o outro que não é verdadeiramente outro, eu me vejo nele, me reconheço. Agora, se poliamor significa polissexo, existe deste sempre. No século XVIII, os libertinos franceses se entregavam ao sexo livremente e disso resultou uma grande literatura erótica. O Museu Picasso de Paris, construído no século XVIII, era a residência de um conselheiro do rei que a construiu para alojar a própria família e o amante da sua esposa com toda a familia deste. Na França, ao contrário dos Estados Unidos, sempre houve uma grande liberdade sexual. Trata-se de um indício de civilidade.
O amor é narcísico. Isso significa que sempre amamos a nós mesmos? O amor quer que o amante e o amado sejam idênticos. Se o outro não se assemelhasse a mim, se eu nele não reconhecesse a minha imagem, não o amaria. Daí o poema de Carlos Drummond de Andrade: “Os amantes se amam cruelmente/ e com se amarem tanto não se veem/ Um se beija no outro, refletido/ Dois amantes que são? Dois inimigos”. O amor é sempre narcísico, o amado é um outro que não é inteiramente outro. Mas o amor não é sempre cruel, e os amantes não são necessariamente inimigos.
É possível explicar como e por que o amor surge? Escrevi O que é o Amor há trinta e cinco anos. Era uma escritora de formação psicanalítica, uma escritora que não pensou nas reações possíveis do seu meio social, bem mais machista na época. O livro foi extremamente polêmico e até de nazista eu fui chamada. Nesse intervalo, porém, não surgiu uma teoria psicanalítica nova sobre o amor. Por isso, mantive no livro a ideia de que o amor é um enigma que não temos como decifrar. Daí a pergunta de Fernando Pessoa no Livro do Desassossego: “Anjo, de que matéria é feita a tua matéria alada?”. O amor é um ser alado sem o qual nós não viveríamos, ele suspende a realidade e nós precisamos disso. Me refiro ao amor comum dos mortais, e não ao dos mestres budistas, que têm condições de suportar o inferno que é o mundo.
Alguns psicanalistas questionam hoje o Complexo de Édipo, por ter se espelhado em uma sociedade diferente da atual. Ele ainda serve para explicar por que escolhemos determinado tipo de parceiro? O Complexo de Édipo é um dos mitos extraordinários da psicanálise. Antes de Freud, os doentes mentais eram isolados nos sanatórios. Freud recorreu à tragédia grega para explicar a doença mental e, com isso, humanizou os doentes. Mas não há como explicar por que a gente escolhe um determinado parceiro e não outro (se traz características do pai e da mãe, por exemplo). Podemos fazer hipóteses. São muitos fatores e nenhum deles por si só explica a escolha.
O que determina a duração do amor? Cada caso é diferente do outro e precisa ser considerado na sua singularidade.
Ainda pensa que é impossível dizer o amor no português? Na época em que eu escrevi isso, eu me referia ao português do Brasil. Os portugueses cantam o amor desde sempre. A lírica camoniana é um verdadeiro assombro. Agora, tanto não é impossível dizer o amor no português do Brasil que eu disse e agora adaptei o livro para uma versão audiovisual. Os textos foram filmados e ditos lindamente pelo ator Ricardo Bittencourt para figurarem no Youtube.
O amor é uma invenção cultural? O amor surge, no século XII, com o trovador e o amor cortês. Segundo o código do amor cortês, o trovador devia expressar seus elogios e súplicas a uma mulher da nobreza, casada, que tivesse uma posição social reconhecida. O amor cortês é um marco na história da civilização, porque ele enaltece a mulher. Quem melhor falou sobre isso, na minha opinião, foi Octavio Paz, no último livro que escreveu, A Dupla Chama.
Seu livro centra fogo no machismo. Em que medida a ética machista é contrária ao sentimento amoroso? Não pode haver amor sem o reconhecimento do desejo do outro. Macho que é macho não reconhece nenhum desejo que não seja o seu. O machismo é uma ética infeliz e assassina como na Tragédia Brasileira, o poema de Manuel Bandeira. Misael, funcionário, conhece Maria Elvira, a tira da vida, instala e trata. Ela arranja namorado. Ele, para evitar escândalo, muda de bairro, muda dezessete vezes — até um dia matá-la a tiros. Misael, indubitavelmente, fez de tudo para escapar ao imperativo machista, mas não teve como, e o fato é que Maria Elvira acabou assassinada, pagou o preço máximo. Necessário que o machismo seja desqualificado sistematicamente. Chegou a hora do “diga não”.