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Elogiada por Obama, autora enfrentou família para entrar na escola aos 17

Tara Westover fala a VEJA sobre a vida reclusa articulada pelo pai extremista até a defesa de seu doutorado em Cambridge: 'Estudar foi viciante'

Por Meire Kusumoto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 set 2018, 08h00 - Publicado em 20 set 2018, 08h00
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  • Até os 17 anos, a americana Tara Westover nunca tinha entrado em uma sala de aula. Dez anos depois, defendeu seu doutorado em história na tradicional Universidade de Cambridge, uma das mais conceituadas do mundo. Para isso, precisou deixar para trás, em sua cidade natal ao pé de uma montanha na área rural do estado de Idaho, nos Estados Unidos, um pai que estocava comida e gasolina para se preparar para o caos do fim do mundo, um irmão que a agredia e uma família que não acreditava no poder da educação ou da medicina tradicional.

    Tara é filha de mórmons sobrevivencialistas, como são chamadas as pessoas que acreditam que devem se preparar para emergências provocadas por catástrofes naturais ou rupturas na ordem social e política. O pai de Tara desacreditava o governo, por isso demorou até mesmo para registrar vários de seus filhos — a jovem, por exemplo, só ganhou certidão de nascimento aos 9 anos. Também não matriculou as crianças na escola e não se preocupava em levá-las para o hospital quando se machucavam — achava que sua mulher, que sabia trabalhar com ervas, poderia resolver qualquer enfermidade.

    Tara não convivia com pessoas de sua idade e só começou a frequentar aulas tradicionais na faculdade, depois de passar meses estudando sozinha em casa, escondida dos pais, para fazer o exame de admissão. A contragosto, seu pai acabou aceitando que ela fosse estudar na Brigham Young University, uma faculdade privada mantida pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Mas a relação dos dois acabou se deteriorando até se tornar inexistente por outro motivo: a revelação por parte de Tara de que sofria com o abuso de seu irmão mais velho, Shawn, que, violentamente, torcia seu pulso, puxava seu cabelo e enfiava sua cabeça no vaso sanitário a cada desentendimento. Seu pai não aceitou que isso fosse verdade, e proibiu toda a família de manter relações com Tara.

    A jovem decidiu contar essa história no livro de memórias A Menina da Montanha, que acaba de ser publicado no Brasil pela Rocco. Lançada em fevereiro no país americano, a obra, que reflete sobre família e educação sem apelar para a autoajuda, se tornou um sucesso: angariou elogios da crítica especializada e permanece há 29 semanas na lista de mais vendidos do jornal The New York Times. Para finalizar, o livro ainda entrou para a lista de leituras de verão do ex-presidente americano Barack Obama, que chamou a obra de “excepcional”.

    A VEJA, Tara fala sobre a infância, os primeiros momentos na escola e a relação com a família. Confira a entrevista:

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    Como descreveria a sua infância? Foi complicada. Em muitos sentidos, foi bonita, cresci em uma bela montanha, meus pais me amavam, pude brincar na fazenda, onde tínhamos animais, era idílico. Mas o ferro-velho que meu pai mantinha era perigoso e, como meus pais não acreditavam em médicos, nós não recebíamos atendimento quando nos machucávamos. Eu tinha um irmão mais velho que era violento e algumas questões não eram resolvidas da maneira que deveriam ter sido.

    Acha que o que seu irmão Shawn fez vai impactar a sua vida para sempre? Por um tempo, tive muitos problemas emocionais por causa disso, não conseguia confiar nas pessoas ou me abrir com elas. Levou alguns anos para que eu pudesse superar isso. Ele usava uma palavra com muita frequência comigo, uma palavra nociva e que me magoava. Ele me chamava de p***. Para uma garota de 16 anos, isso influencia a percepção que ela tem dela mesma de uma maneira negativa. Meu irmão tem muito poder sobre mim, ele me definiu para mim mesma e acho que não há poder maior do que esse.

    Seus pais pararam de falar com você quando revelou o abuso que sofria de Shawn. Como lida com isso? Para sempre será uma tragédia eu ter precisado abrir mão dos meus pais para que pudesse cuidar de mim mesma. Queria muito que essa escolha nunca tivesse existido, mas uma vez que apareceu, sou grata por ter conseguido deixá-los e cuidar de mim. Isso não significa que eu não os ame ou que não valorize a vida que eles levam, mas levou muito tempo para que eu percebesse que há limites para as obrigações que temos com as nossas famílias. Às vezes, quando o que você deve à sua família está em conflito com o que você deve a si mesmo, tudo bem escolher a si mesmo. Hoje não sei se um dia vamos voltar a ter contato, está fora das minhas mãos. É uma decisão que eles têm que fazer.

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    Meu irmão usava uma palavra com muita frequência comigo, uma palavra nociva e que me magoava. Ele me chamava de p***.

    Seu pai e seu irmão Shawn sempre falavam sobre como uma mulher decente deveria ser e agir. Como isso influenciou a sua noção do gênero feminino? Internalizei parte da retórica que culpa a mulher por sentimentos e ações que os homens têm. Nunca tinha ouvido falar de feminismo até ir estudar em Cambridge, quando tinha 21 anos. Precisei pensar muito sobre essas ideias, textos e o que eu via. Cresci com uma ideia muito particular do que era ser mulher, e para mim isso estava muito ligado à maternidade. Eu não tinha uma concepção de mulheres fazendo ou sendo algo além disso. Levei muitos anos para que eu confiasse nos meus próprios instintos sobre quem eu era em vez do que o que as outras pessoas me diziam. Hoje, me considero feminista.

    De onde veio a força para estudar sozinha para tentar uma vaga na faculdade? Não tenho certeza, mas eu sabia que não queria trabalhar mais com o meu pai. Não tinha muita noção do que era educação ou faculdade, mas sabia que seriam coisas diferentes da vida que eu levava e que a vida que eu tinha não era o que eu queria. Quando descobri que tinha passado no teste e iria começar a faculdade, aos 17 anos, fiquei nervosa e ao mesmo tempo animada, porque era uma oportunidade de sair pela porta e encontrar um mundo diferente.

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    Como foi o período de adaptação? Eu não tinha o traquejo social de que precisava, porque nunca tinha passado muito tempo com pessoas da minha própria idade. Acho que sempre terei um pouco de ansiedade social. Eu tendo a pensar demais nas coisas e a querer uma fórmula para interagir com as pessoas, e não existe fórmula. Nos estudos, também foi complicado, porque eu não tinha conhecimento sobre muita coisa. Uma das primeiras questões que fiz na faculdade foi perguntando o que era o holocausto, nunca tinha ouvido falar naquilo antes. Também não sabia o que eram direitos civis e achava que a Europa era um país, não um continente. Havia muitos buracos na minha educação que me separavam dos outros estudantes.

    No livro, você conta que uma vez te perguntaram se sentia raiva por seus pais nunca a terem colocado na escola. Você, instintivamente, disse que não. Como vê esse assunto hoje? Cresci com a forte ideia de respeito e não sentia que tinha o direito de ter raiva dos meus pais por isso. Sempre era meu instinto concordar com eles e não os criticar. Respeito é uma coisa boa, no geral, mas no meu caso foi difícil por ter sofrido tanto na faculdade e não conseguir entender por que eu não tinha tido uma educação elementar. Foi difícil aceitar que eu talvez não concordasse com a maneira como meus pais tinham me criado.

    Por que decidiu estudar história? Aprender sobre história, quando eu nunca tinha tido a oportunidade antes, foi muito viciante porque pude ver todas as perspectivas. Quando criança, fui criada com perspectiva do meu pai. De repente ter acesso a vários pontos de vista diferentes fez com que eu pudesse escolher o que pensar, e não apenas assumir a visão de mundo que meu pai tinha. Foi viciante e um ato de autoafirmação.

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    Foi difícil aceitar que eu talvez não concordasse com a maneira como meus pais tinham me criado.

    O prólogo do livro diz que ele não é sobre religião, que há pessoas religiosas boas e ruins. Incomoda a você a associação que algumas pessoas fazem da religião como algo ruim? É uma simplificação excessiva, reducionista. Há pessoas boas, ruins, gentis, imprudentes, patéticas, egoístas. Vi todo tipo de pessoa com todo tipo de crença e nunca achei que você ter uma crença define se você é gentil ou não. No caso do meu pai, a religião era um fator, mas eu sempre achei que ele sofria de alguma doença mental, como bipolaridade. Acredito que a doença mental provavelmente foi o que levou ao extremismo religioso e não o contrário. Hoje não sou religiosa, me considero agnóstica. Mas sou amigável a religiões, não tenho pensamentos ou sentimentos negativos em relação a isso.

    Como foi descobrir que seu livro estava na lista de leitura de verão de Barack Obama? Foi muito emocionante descobrir que meu livro estava sendo lido por um ex-presidente. Fiquei muito animada e muito grata a ele por ter dispensado tempo para isso. Achei que ele trouxe boas reflexões.

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