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A mais maldita das palavras, heresia, é levantada contra o papa

E não foi por “fanáticos” ou “extremistas”, mas por teólogos de renome com boa argumentação sobre os pontos de atrito de Francisco com a doutrina da Igreja

Por Vilma Gryzinski 5 Maio 2019, 08h22

Acusar um papa de ser herético é pior do que denunciar um pai pelo mais vil dos crimes. Os 21 padres e acadêmicos católicos que assinaram uma carta aberta aos bispos pedindo que interfiram na situação extrema de ter um papa que pratica heresia, sabem disso muito bem.

Como são conservadores, mas não bobos ou fanáticos, além de especialistas em teologia, ressaltam que “a Igreja não tem jurisdição nem autoridade para derrubar um papa”. E este, seja quem for, não sustentaria ensinamentos heréticos quando no exercício que se enquadre “nas

condições condizentes com o infalível Santo Magistério”.

Se não fizessem as ressalvas, inclusive sobre a frequentemente pouco entendida infalibilidade papal (quem quiser, acrescente aspas), demonstrariam ignorância ou até incidiriam eles próprios em heresia.

Resumindo: a chapa está fervendo para o papa argentino.

Ao contrário do que se diz sobre as reações negativas que Jorge Bergoglio provoca, atribuídas a grupúsculos extremistas e de pouca representatividade (que, obviamente, existem), é grande a decepção de fieis comuns com ele, principalmente nos Estados Unidos e na Europa.

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Muitas vezes, católicos praticantes não entendem por que Francisco faz gestos como curvar-se a autoridades muçulmanas, beijar um crucifixo com a foice e o martelo, contemporizar com todo tipo de autoritarismo ou pura maluquice de esquerda, mandar indiretas constantes a Donald Trump e exigir que todas as fronteiras dos países ricos sejam indiscriminadamente abertas, inclusive sem considerações de segurança.

A última foi o gesto bizarro de se prostrar diante do presidente do Sudão do Sul e mais dois visitantes e beijar seus pés.

O que seria um ato de extrema humildade e compaixão em defesa dos infelizes que perdem a vida às centenas de milhares nos horrores da guerra civil, desfechada quase que imediatamente depois da recente independência do país, pegou mal e foi interpretado como uma manifestação de ignorância, no melhor dos casos, ou desequilíbrio,

O presidente, Salva Kiir Mayardit, foi um combatente da guerra da independência, quando atrocidades eram debitadas a um objetivo superior. No poder, obviamente, continuou com as práticas sinistras, agravadas pela rivalidade entre grupos étnicos.

A última foi mandar sequestrar no Quênia dois adversários políticos, em seguida torturados e mortos. Ele é católico, descontando-se peculiaridades regionais como a poligamia, e já declarou que a homossexualidade é uma perversão inventada no ocidente. As declarações do papa Francisco sobre o assunto são um dos pontos considerados fora da doutrina. A posição oficial da Igreja é de respeito e acolhimento, mas não de cravar que os homossexuais o são por vontade de Deus.

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Só nos Estados Unidos uma tese assim, levantada pelo pré-candidato presidencial gay Peter Buttigieg, seria discutida em termos religiosos e não políticos.

Outros temas enquadrados na grave carta aberta em termos teológicos: a abertura a que divorciados comunguem (desvio do casamento como sacramento), a negação de que apenas os atos sexuais entre esposos são “moralmente lícitos” e a sustentação de que Deus não apenas permite como quer “o pluralismo e a diversidade de religiões, cristãs e não-cristãs”.

Por palavras, atos, omissão ou nomeação de “homens dúbios” que propagam os mesmos desvios, o papa “é culpado do crime de heresia”, diz a carta. Este crime é cometido “quando um católico nega, conscientemente e persistentemente, algo que sabe que a Igreja ensina como tendo sido revelado por Deus”.

Padres marxistas, freis guerrilheiros, cardeais vermelhos (da-cor-do-partido), religiosos contra o celibato e a favor da ordenação de mulheres e até um bispo como o alemão Franz-Joseph Overbeck, que considera “um absurdo” não ordenar padres homossexuais, não são novidade no vasto leque da Igreja, inapelavelmente dividida entre os apelos do mundo e a perpetuidade da doutrina sobre a mensagem divina.

O próprio papa Francisco carrega dentro de si a dualidade de sua história humana e o poder do mandato espiritual. Aos 16 anos, conta ter tido uma espécie de revelação ao passar diante de uma igreja de Buenos Aires. Uma avassaladora força superior o levou a entrar, confessar-se e decidir ali que seria padre.

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Tornou-se um jesuíta simpático ao peronismo e ao distributivismo social. Nenhuma força, desse ou de outro mundo, o convenceria de que o capitalismo pode gerar mais benefícios materiais (o empobrecimento espiritual é outra questão, muitas vezes relegada ao plano zero pelos próprios representantes da Igreja).

Os Estados Unidos de Trump, onde o desemprego desapareceu, a inflação não aumentou e a economia cresceu 3,2% no último trimestre, desmentindo todos os falsos profetas (e gerando, ironicamente, as novas levas humanas em busca de oportunidades), são completamente indecifráveis para pessoas com a formação de Jorge Bergoglio.

Complicado também o beijo trocado em Abu Dabhi com Ahmed El-Tayeb, o grão-imã de Al-Azhar, o tradicional centro de ensinamentos islâmicos do Egito que segue a linha sufista, mais militante e jihadista do que mística no norte da África.

O documento conjunto, com apelos em favor da paz, da fraternidade, da coexistência e de tudo o que é bom e nobre, contra o extremismo “ateu ou religioso”, foi interpretado como uma equiparacão das religiões. Isso significaria que o papa abriria mão do fundamento do catolicismo: a salvação só existe através da graça de Deus e da fé em Jesus Cristo como Nosso Senhor e Salvador, tal como pregadas pela Igreja.

Pior ainda para os defensores da doutrina foi o papa dizer, nos 500 anos das teses pregadas na porta da capela de Wittenberg por Martinho Lutero, que o monge rebelde, responsável pela grande racha protestante, “não tinha intenções erradas”.

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“Era um reformista”, acrescentou. Lutero certamente denunciou a corrupção, a cobiça e o embriagamento pelo poder da cúpula da Igreja (com a ressalva de que a abjeta venda de indulgências era para financiar o esplendor da basílica de São Pedro).

Como seu ato mais consequente foi a insurreição contra o papado, estaria Francisco especulando sobre a própria natureza de seu posto? Estaria se aproximando perigosamente do pensamento do homem que a Igreja considerou por séculos inspirado por Satã?

Na verdade, desde 1999, muito antes portanto do pontifício de Bergoglio, a Igreja Católica e a Federação Luterana seguem um documento chamado Doutrina da Justificação.

“Confessamos juntos: somente por graças na fé da obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo”, diz a declaração.

Uma beleza como aproximação entre confissões cristãs, conspurcada, na visão dos tradicionalistas, por iniciativas do atual papado como permitir que protestantes tomem a comunhão, o que seria praticamente herético.

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Na aproximação com o protestantismo não-evangélico, a cúpula da Igreja pode estar inconscientemente seguindo o mesmo caminho: transformar-se numa religião morna, fraca, diluída, politicamente correta e em acelerada decomposição.

Por sua extensão e universalidade, a Igreja ainda conserva bolsões onde os mistérios do divino, o inato apelo da espiritualidade e a indecifrável caixa-preta da fé continuam fortes.

Muito antes de se tornar papa e, depois da abdicação, papa emérito, Bento XVI já falava num futuro em que a Igreja seria reduzida aos crentes verdadeiros, mesmo que se tornasse incapaz de ocupar os espaços físicos de seu auge. Esse núcleo reacenderia as chamas da fé e faria a Igreja de Cristo renascer do encolhimento atual.

As reações negativas a Francisco em várias esferas, desde fieis comuns até cardeais inconformados, chegaram ao ponto de recuperar um prestígio que o papa emérito nunca teve.

Os mais extremistas atribuem até uma tragédia como o incêndio que “decapitou” Notre Dame, na segunda-feira da horrível semana santa que culminou com o massacre o domingo de Páscoa no Sri Lanka, a um recado simbólico sobre a corrupção doutrinária na cabeça da Igreja.

O mais conhecido signatário da carta-bomba acusando o papa de heresia não tem nada dessas esquisitices. Aidan Nichols, frei dominicano consagrado sacerdote, é um conhecido teólogo inglês que deu aulas em Oxford, autor de vários livros, inclusive um sobre a teologia de Joseph Ratzinger.

Só para lembrar: os dominicanos, muitos cooptados pela esquerda na era contemporânea, são uma ordem criada no século 12 para, através da pregação, combater a heresia. Na época, os hereges eram os cátaros, uma corrente fundamentalista surpreendentemente forte no sul da França.

Rejeitavam o mundo material como origem do mal, eram veganos (fora o peixe) e infensos às tentativas, pelo bem ou pela fogueira, de levá-los de volta ao seio da igreja-mãe.

A carta “é um recurso extremo para responder ao prejuízo acumulado causado pelas palavras e ações do papa Francisco ao longo de anos, as quais deram origem a uma das piores crises da história da Igreja Católica”.

Ela é também descrita como o terceiro passo do processo iniciado com um pedido de esclarecimento sobre conteúdos dúbios da encíclica Amoris Laetitia. O segundo passo foi tornar pública as “dúvidas”, subscritas por religiosos e acadêmicos, dos quais o mais conhecido é o cardeal americano Raymond Burke.

Como o papa de jeitão simples e sapatos gastos, muito mais implacável no trato com adversários internos na Igreja do que com os externos, chegou ao ponto de ser acusado de heresia, o mais grave dos crimes, pior ainda, do ponto de vista doutrinário, do que o horror dos abusos sexuais contra meninos e adolescentes cometidos por membros do clero?

Os autores da carta sabem muito bem que os bispos não vão denunciar o papa, como eles pedem. “Demos esse passo para que fique o registro histórico para a posteridade”, escreveu um dos signatários, o professor de filosofia Peter Kwasniewski. “Ficará claro que os católicos de nosso tempo se dispuseram não apenas a denunciar os pecados do abuso clerical, mas também os pecados de heresia, piores ainda por serem mais diretamente opostos ao Próprio Deus.”

“Demos esse passo também perante Deus, como testemunho de nossa consciência. Talvez existam os que podem dormir como bebês sem levantar uma voz de protesto contra a autodemolição da Fé e à condução enganosa de milhares de almas; os que vêm o que o papa está falando e fazendo, mas dão de ombros e acham que não haverá um dano permanente.”

“Eu não sou uma pessoa assim”, terminou o filósofo americano, um tradicionalista que também compõe música sacra e, obviamente, defensor da liturgia tradicional, em latim e sem guitarras desafinadas. “Não me convenci muito de que houve heresia formal”, comentou sobre a carta, que tem até agora um total de 32 adesões, Mark Brumley, presidente da maior editora católica dos Estados Unidos, a Ignatius Press.

“Mas por causa dos argumentos levantados no documento e das pessoas que os enunciam, é algo que deve ser levado a sério. Tem que haver uma explicação. Não deve ser deixado para as pessoas ficarem especulando.”

Considerando-se os precedentes, a possibilidade de que o papa Francisco dê uma resposta direita é próxima do zero. Ele prefere indiretas. E mão pesada, nos bastidores.

Católicos praticantes, doutrinados a amar e seguir o papa, ficam cada vez mais em dúvida.

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