Sem abrir um processo de impeachment, com seus recursos intermináveis, a África do Sul fez uma troca a jato de presidente.
Depois de um pedido humilhante de mais alguns meses de prazo no poder, Jacob Zuma entendeu que estava demitido. O vice, Cyril Ramaphosa, assumiu no dia seguinte. O processo todo durou três dias.
Isso foi possível porque o país tem um regime presidencialista com uma característica do parlamentarismo: o voto ou moção de não-confiança.
E, claro, porque o partido hegemônico já tinha decidido que estava na hora de mudar de líder. Ou de capo, considerando-se os hábitos políticos extremamente parecidos com os vigentes no Brasil.
O artigo 102 da constituição sul-africana prevê que o presidente deve renunciar se a moção de não-confiança for aprovada por maioria simples. Não é preciso haver acusação de violação do dever constitucional, como no caso do impeachment, que também está previsto, mas nunca foi usado.
O presidente anterior, Thabo Mbeki, também teve sua carreira política abreviada da mesma forma, em 2008. É tudo constitucional, mas a raiz está no modelo soviético de organização política: um comitê central, ou politburo, do partido dominante, ou único, escolhe e derruba o líder.
O Congresso Nacional Africano, criado na na era do domínio da minoria branca, tem 272 dos 400 parlamentares da Assembleia Nacional. Quando a liderança do partido comunicou a Zuma que ele deveria renunciar, só restou o chororô.
A sucessão já estava decidida desde dezembro, quando Ramaphosa foi eleito líder do partido, derrotando uma ex-mulher e última esperança de Zuma. Em seu discurso, falou em uma década perdida devido a “falência de liderança e prioridades equivocadas”.
Precisava ser mais claro? Precisava, pois ninguém vai largando o poder assim na África do Sul. Por isso, comitê executivo do CNA deu o ultimato, depois de uma reunião de dez horas. Em inglês, a língua comum do país, o processo é chamado de recall, como no caso de produtos com defeito de fabricação.
E que defeitos tinha Zuma, um líder populista que contava com muita simpatia do povão, com suas quatro mulheres – simultâneas – e o uso deliberado das elegantes roupas tribais da nação zulu, o maior grupo étnico entre os quase 80% de negros da África do Sul.
Outro grupo importante é o xhosa, ao qual pertencia Nelson Mandela. Ramaphosa é da nação venda, um grupo minoritário.
A África do Sul tem 8,9% de população branca e igual número de “coloured”, como são chamados os pardos ou mestiços. Existe também uma minoria de origem indiana.
Foi uma família de bilionários indianos, os irmãos Gupta, que se associou a Zuma e apaniguados para o “assalto ao estado”, como foi classificada a escala de corrupção impressionante até para os padrões sul-africanos.
Desde contratos gigantescos para obras públicas até um empréstimo de fachada para a mulher mais jovem de Zuma comprar uma casona, tudo apareceu ou foi deduzido nos Gupta-Leaks, o vazamento de centenas de milhares de emails.
Um filme conhecidíssimo no Brasil que ajudou a empurrar o ex-presidente a uma aposentadoria sem problemas, caso as investigações não sigam seu curso, o que não é nada impossível.
Ramaphosa, adivinhem só, é um dos homens mais ricos da África do Sul, fruto de uma carreira empresarial que seguiu quando não foi escolhido para a sucessão de Mandela e se beneficiou da exigência de participação de integrantes da maioria negra na direção de empresas.
Adivinhem só quem foram os beneficiados? O novo presidente tem participação na Coca-Cola e McDonald’s.
Promete usar os conhecimentos adquiridos do meio empresarial para dinamizar a economia, combater o catastrófico desemprego de quase 30% e recuperar investimentos estrangeiros. E, claro, combater a corrupção. Boa sorte ao sul-africanos.