Vaidoso, mulherengo, arroz de festa e até ingrato. Só temos que dar graças a Alá pelos defeitos tão humanos de Salman Rushdie. Eles certamente o ajudaram na terrível jornada que precisou percorrer, aos 75 anos, depois de ser esfaqueado no palco de um evento literário no estado de Nova York por um fanático islamista, em agosto passado.
A jornada não está completa. O escritor indiano que tem nacionalidade britânica e é radicado nos Estados Unidos ainda não conseguiu produzir “nada que preste”. Acha que tem stress pós-traumático e seu cérebro está procurando novos caminhos diante da imensidão do mal que o acometeu
Mas o lançamento de um livro escrito antes do atentado, perpetrado por um americano que visitou o Líbano de seus pais e voltou radicalizado, está tirando Rushdie da toca, com as diferentes cicatrizes pelo corpo e óculos com uma lente clara e outra escura, escondendo o olho que perdeu.
A ideia que leva alguém a apunhalar o olho de um escritor durante um ato numa instituição dedicada, numa ironia cruel, a proteger autores perseguidos, é, infelizmente, conhecida por todos: o fanatismo mais enlouquecido e brutal dos que o praticam acreditando estar defendendo o nome de uma figura religiosa como o profeta Maomé, recriado ficcionalmente em Versículos Satânicos.
Trinta e três anos depois da fatwa, a sentença religiosa proferida pelo aiatolá Khomeini, um americano de 24 anos chamado Hadi Matar achou que teria a “honra” de cumprir a condenação.
Como num romance ruim – com final feliz, inadmissível na literatura contemporânea -, Rushdie viveu para contar. Em entrevistas à New Yorker e ao El País, recapitulou pedaços de sua trajetória. Fez bem em abandonar a proteção de guarda-costas fornecidos pela governo britânico quando se mudou para os Estados Unidos?
“Eu tenho me feito esta pergunta e não tenho a resposta”.
Teve um sonho profético em que alguém o atacava com um objeto pontiagudo?
“Uma coincidência bizarra. Não foi nada parecido com o que aconteceu realmente”.
Arrepende-se do que escreveu? Se pudesse, mudaria alguma coisa?
“Preferiria não viver ameaçado, mas não mudaria absolutamente nada”.
Na verdade, Rushdie chegou a mudar, numa tentativa de se livrar da maldição agravada pelo fato de que ele, um intelectual de convicções progressistas, encontrava mais solidariedade entre a direita, enquanto personalidades de esquerda se escusavam – ou até achavam que ele havia “provocado” os muçulmanos. Até o príncipe Charles, hoje rei, o condenava em particular por ter afrontado o sentimento religioso de fiéis – embora eventualmente o escritor visse a ganhar o título de “Sir”.
Rushdie chegou a fazer uma declaração de arrependimento e de fé na religião muçulmana na qual foi criado. Não adiantou nada. Foi muito melhor para sua reputação, e provavelmente para a autoestima, quando fez o papel de si mesmo num episódio de Larry David em que acalma o implacável comediante, ameaçado por causa de um musical chamado Fatwa, dizendo que condenações à morte esgrimidas por fanáticos iranianos têm o efeito de atrair mulheres, como “um pozinho mágico sexy”.
Rushdie certamente aproveitou este pozinho. Só de casamentos, foram cinco, sendo o atual com a linda poetisa negra Rachel Eliza Griffith. Agora, abre sua história pós-atentado para promover o livro escrito antes dele, A Cidade da Vitória. Para variar, o universo que constrói é inspirado pelo hinduísmo. A personagem principal é uma adolescente que cria uma cidade ideal e vive 248 anos (Orlando? “O maravilhoso da literatura é que nada nunca é realmente novo”.)
Na reportagem da New Yorker, o final de livro é tratado, compreensivelmente, como uma espécie de testamento de Rushdie. A personagem principal contempla um império que se ergueu e caiu, com seus reis e rainhas.
“Eu mesma não sou nada agora. Tudo o que resta é esta cidade de palavras. As palavras são as únicas vitoriosas”.
Bem-vindo de volta, Salman Rushdie.