Até Evo Morales foi capaz de entender o que significava olhar em volta e ver que a guarda presidencial havia sumido. O “até” é usado para enfatizar a dramaticidade dos acontecimentos.
Evo não tem nada de bobo. Ao contrário, foi o excesso de esperteza que abreviou seu fim. Perito em manipular cinicamente os fatos, quando se colocavam entre ele e o poder, durante treze anos fez o diabo para se consolar no poder.
Conseguiu fingir que a vitória em eleições antecipadas significava um primeiro mandato, ignorar um plebiscito que não lhe permitia concorrer de novo e inaugurar o sistema do servidor “fantasma”, um lugar onde os votos da última eleição entraram antecipando um segundo turno e saíram garantindo sua reeleição para um quarto mandato
Quando policiais subiram no teto de um quartel e anunciaram que não reprimiriam mais manifestações de protesto contra a fraude escandalosa, o destino estava selado.
Caso Evo Morales fingisse que não estava vendo, escreveram num cartaz improvisado: “Motim policial”.
O último bolivariano fora da Venezuela ainda tentou a tática de convocar novas eleições. Não colou. Alguma dúvida? No meio da tarde de domingo, o comando das Forças Armadas e, em seguida, o da Polícia Nacional “pediram” que ele renunciasse para “restaurar a paz social”.
Saiu pisando duro, denunciando um “golpe cívico-político-policial”.
“Ser indígena e ser de esquerda antiimperialista é nosso pecado”, disse.
Fazer autocrítica numa hora dessas realmente é difícil.
Também é previsível colocar a culpa na oposição, representada por Carlos Camacho, o candidato que havia vencido na primeira rodada, mas contra o qual iria a segundo turno se a mão grande não tivesse interferido, e Fernando Camacho, o líder de Santa Cruz.
Foco de oposição, de muitas maneiras a província vizinha do Brasil foi literalmente incinerada com o grande incêndio na sua área amazônica, incentivado por uma legislação de Evo Morales aumentando o território florestal que podia ser desmatado para a plantação de coca.
Moradores de Santa Cruz chegaram ao ponto inédito de fazer uma autodeclaração de emergência diante da tragédia do fogo sem controle.
Vale a pena lembrar que Evo foi cocalero e ganhou um grande apoio entre a população indígena, dois terços do total, pelo incentivo à produção da planta mágica, um dom e uma maldição dos deuses andinos.
Nem se a população da Bolívia fosse três vezes maior conseguiria mascar a quantidade de folhas de coca, o uso tradicional da planta, apresentado como cortina de fumaça para justificar o aumento do plantio.
Celebrar Evo Morales como primeiro indígena a ser eleito presidente talvez seja um pouco de exagero, considerando-se que os anteriores não eram exatamente nórdicos, mas sim fruto da miscigenação tão comum na América Latina.
Em vários aspectos, a vida dos bolivianos mais pobres melhorou, embora não o suficiente para segurar os que saem em busca de uma vida melhor, na Argentina ou no Brasil.
E muito menos para segurar no poder um homem que, como tantos outros da mesma linhagem, intoxicou-se com ele.
Só para lembrar: o ex-apenado de Curitiba, agora mais influencer do que nunca, citou recentemente a Bolívia como um exemplo de país que dá certo.
Seria muito bom se desse mesmo, se um líder popular como Evo Morales não tivesse praticado arbitrariedades e espertezas ilegais para se manter no poder e se sua saída de cena viesse a melhorar a situação de um país tão castigado pela pobreza.
Saída, aliás, previsivelmente temporária.
“Voltaremos e seremos milhões”, prometeu o vice-presidente Álvaro García Linera.
A referência é ao líder de uma rebelião indígena do século 18, Tupac Katari. Mais famosamente, fora da Bolívia, foi usada por Evita Perón.
Eva e Evo acabaram tendo destinos entrecruzados, em outra loucura latino-americana.
Enquanto os peronistas volta ao poder, o influencer brasileiro sai da cadeia e todas as suas turmas comemoram os protestos no Chile como prova de que o avanço econômico do país é uma miragem, o bolivariano boliviano sai de cena.
Eita continente louco.