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Agora derrubado, Colombo foi passaporte para “limpar” italianos

Com poucas ligações com a Itália e dúvidas sobre sua origem, o descobridor foi usado por imigrantes para, entre outras melhorias, ser considerados brancos

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 27 jul 2020, 08h55 - Publicado em 27 jul 2020, 08h46

A multidão queria sangue naquele 14 de março de 1891 em Nova Orleans. E sangue foi o que conseguiu quando arrombou, primeiro, o paiol de armas da cidade e depois a cadeia onde nove acusados aguardavam a liberdade depois de absolvidos pelo assassinato do chefe de polícia David Hennessy.

Na confusão, outros detidos acabaram arrastados juntos. Onze homens foram crivados de balas. Alguns corpos foram enforcados, outros destroçados, com os pedaços distribuídos entre a turba.

Estava cumprida a pena apregoada pelo jornal Daily States: “Erga-te, povo de Nova Orleans. Mãos estrangeiras de assassinos juramentados mancharam com o sangue dos mártires tua civilização”.

Ao contrário do regime que se tornou barbaramente habitual nos estados do sul, as vítimas do linchamento não foram negros, mas imigrantes italianos, em especial sicilianos que chegavam para substituir a mão de obra escrava nas plantações de algodão e cana.

Foi, inclusive, para apaziguar a comunidade de novos imigrantes que o presidente Benjamin Harrison decretou feriado nacional o 12 de outubro do ano seguinte, por ocasião do quarto centenário do descobrimento da América.

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Cristóvão Colombo, um italiano do tempo em que nem existia a Itália, com a origem genovesa até hoje colocada em dúvida e carreira de navegante construída entre Portugal e Espanha, tornou-se um instrumento dos americanos de origem italiana para proclamar uma origem comum e digna de respeito.

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E, principalmente, para que fossem considerados brancos. 

Judeus asquenazi, poloneses e até alemães católicos passaram pelo mesmo processo, conquistando o “branqueamento” que diminuía a discriminação e, gradualmente, lhes dava acesso aos escalões mais altos da sociedade, conquistados através do trabalho e do estudo.

Mas nenhum deles teve um patrono como Colombo, inserido com um certo esforço na narrativa nacional da América, construída em torno da chegada, em 1620, dos primeiros imigrantes europeus decididos a mudar de continente, puritanos fundamentalistas protestantes que saíram da Inglaterra e se lançaram na aventura do Novo Mundo, dando origem, entre outras coisas, ao Dia de Ação de Graças e à Black Friday.

Esse dia se tornou feriado nacional em 1863, em plena guerra civil, por iniciativa de Abraham Lincoln, depois da batalha que ficou mais célebre pelo discurso do presidente do que pela ação bélica, Gettysburg.

O descobrimento da América só se tornou feriado anual em 1934, depois de muito lobby junto a Franklin Roosevelt feito pelos Cavaleiros de Colombo, uma ordem laica integrada por descendentes de irlandeses católicos.

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Os irlandeses não só enfrentaram sua própria maratona de discriminação como só conseguiram a legitimação plena quando John Kennedy foi eleito presidente – com votos dos vivos e dos mortos, uma intervenção de seu pai, conhecedor dos métodos do prefeito de Chicago, Richard Daley, um notório hipnotizador de urnas.

Nada dessa história cheia de nuances sequer é cogitado pelos derrubadores de estátuas que estão arrancando Cristóvão Colombo das praças públicas americanas.

O furor iconoclasta está, obviamente, carregado de um outro tipo de simbolismo: Colombo decapitado, despedaçado ou jogado no rio é o substituto totêmico de Donald Trump.

Tendo um passado cheio de infâmias para separar os nativos de suas terras, muitos americanos, especialmente do mundo acadêmico, centram em Colombo a prática de julgar figuras históricas por padrões contemporâneos, pespegando-lhe o rótulo de “genocida”.

E não um genocida qualquer, mas o responsável pelo “maior genocídio da história”, a acusação usada, antes da onda atual, para retirar um monumento ao descobridor em Los Angeles.

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Não é incomum que Colombo seja identificado como conquistador e refogado na mesma panela histórica que Hernán Cortez, o da conquista do México.

Todos nós descendemos de invasores, seja qual for o tom da pele ou a etnia. A história humana é uma sucessão de conquistas e nem é preciso lembrar – bem, talvez seja sim – que as populações nativas da América pré-colombiana não estavam vivendo sábia e pacificamente como os habitantes de Pandora, o planeta fictício do filme Avatar.

Isso não diminui, de forma alguma, horrores do passado, inclusive os mais recentes, como a escravidão, que vigorou no Brasil, quase inacreditavelmente, até há apenas 132 anos – menos que um piscar de olhos no tempo histórico.

Pelos padrões do fim do século XV, e pela falta de precedentes que implicava a descoberta de um continente inteiro, Cristóvão Colombo não foi especialmente cruel.

Aliás, nem ao continente chegou, tendo ficado nas ilhas caribenhas as quais teimosamente, contra todas as evidências, insistia em chamar de Cathay (China)) ou Cipango (Japão), obrigando seus tripulantes a jurar o mesmo.

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Colombo não passaria no vestibular da Escola de Sagres, com erros de cálculo tão monumentais que precisou manter as aparências até o fim. Aliás, enfrentava a concorrência de navegantes prodigiosos e mais bem informados, como Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.

Também demorou muito até conseguir vender à corte espanhola o projeto da navegação até a Índias pelo ocidente. 

E era um messiânico de primeira, convencido de que estava imbuído de uma missão divina para descobrir o ouro que financiaria a retomada de Jerusalém, o sinal definitivo de que “este mundo está chegando a seu fim”, como escreveu no Livro das Profecias.

Almirante, comerciante, visionário, interesseiro, obstinado, oportunista. Mesquinho e grandioso, uma figura inapelavelmente esmagada pela dimensão transcendental da descoberta do Novo Mundo, o equivalente, hoje, a encontrar seres vivos sencientes em outro planeta.

No apogeu da era do conhecimento que vivemos, quase já entrando num outro universo, o da inteligência artificial, a revolta dos ignorantes confina Colombo ao porão do obscurantismo.

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E o desfile de outubro em Nova York, uma espécie de Parada do Orgulho Italiano, nunca mais será o mesmo.

Bill de Blasio, um meio-italiano (nome verdadeiro: William Wilhem Jr.), não vê a hora de acabar com a coisa.

Cabral, sem nunca ter atingido a dimensão que a imigração italiana deu a Colombo nos Estados Unidos, que se prepare.

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