Eu vi um homem tendo um surto provocado pelo crack. Não um dos infelizes que desfilam sua miséria pelas cracolândias ou pelas ruas de bairros pobres, mas um senhor de classe média, na faixa dos 60 anos, que saiu de um supermercado numa manhã banal de segunda-feira com uma garrafa de cachaça e uma sacola com carne. Atravessou a rua e foi gritar palavrões para os avós, iguaizinhos a ele, que não o deixaram entrar no parquinho onde brincavam crianças pequenas. Deu um tapa nas costas de um deles e saiu gritando que ia usar suas compras para “trocar por pedra”. A polícia chegou em dois minutos, o homem amansou. Mas o surto não passou. Foi uma cena triste, chocante, deprimente. Quem defende a legalização das drogas deveria fazer um esforço para sair da bolha onde o “liberou geral” é considerado não só necessário como moderno e civilizado e ter alguma experiência direta com viciados. Querer consumir substâncias que alteram o comportamento, sem se preocupar com problemas com a lei, é uma reivindicação aberta ao debate de integrantes de sociedades livres. Mas usar argumentos falsos para isso é uma contrafação intelectual. As drogas não são inofensivas, sua liberação não acaba com o tráfico e os efeitos sobre sociedades mais vulneráveis são muito piores do que os vistos em países avançados. No Afeganistão, terra da papoula que produz o ópio, há um espantoso número calculado em 3,5 milhões viciados nos quais nem o Talibã dá jeito.
“O flagelo americano se chama fentanil, opiáceo sintético que mata mais de 100 000 pessoas por ano”
Também não vale alegar, sem dados, que as drogas liberadas vão criar empregos e gerar impostos — argumento geralmente esgrimido por quem tem horror ao livre empreendedorismo e ao lucro em todas as outras instâncias, menos quando é para ter uma butique de maconha ao alcance de adolescentes vulneráveis. Lojas com aparência de confeitarias gourmets que expõem em louças com curadoria diferentes tipos de maconha realmente enfeitam cidades americanas onde o uso de drogas foi liberado, mas a verdade é que os crimes violentos aumentaram nos estados de livre uso e o tráfico continua prosperando e movimentando mais de 100 bilhões de dólares por ano. O flagelo americano se chama fentanil, um opiáceo sintético que mata mais de 100 000 pessoas por overdose por ano. Isso mesmo: 100 000. Os comprimidos são despejados no mercado mais cobiçado do mundo por traficantes mexicanos que, na guerra pelo domínio dessas praças opulentas, sequestram, torturam, esquartejam vivos e, em alguns casos, cozinham e comem rivais de outros cartéis. Não viraram empreendedores cool.
Defensores do libertarianismo têm bons argumentos, sem a falsidade ideológica habitual, em favor da legalização das drogas em nome da autonomia do indivíduo e da não intervenção do Estado em áreas nas quais costuma causar mais estrago do que benefícios quando interfere. Também há argumentos como o de Alex Berenson, autor do livro intitulado Conte a Seus Filhos: a Verdade sobre Maconha, Doença Mental e Violência, em que explica como a literatura científica mudou nos últimos vinte anos e hoje existem estudos sérios mostrando que “a maconha aumenta o risco de psicose e esquizofrenia”. Drogas não causam dependência porque são ruins, mas porque são boas, provocam uma sensação de prazer que queremos repetir nem que seja, quando todos os freios desabam, numa pracinha frequentada por crianças de colo.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799