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Atriz chinesa multada, chefe da Interpol preso e outros enigmas

China e Arábia Saudita aumentam pressão em casos de corrupção. Como são regimes absolutistas, os processos têm transparência zero

Por Vilma Gryzinski 8 out 2018, 20h31

O chefe da Interpol ser preso em seu próprio país é apenas uma das espantosas ironias vindas da China no momento.

A outra é a dúvida sobre o que Meng Hongwei, um ex-alto funcionário do aparato de segurança, estava fazendo na Interpol.

Mesmo com menos poderes do que em geral se imagina, a organização que promove a cooperação entre órgãos policiais dos 192 países filiados tem, entre outros atributos, participar do combate à pirataria e ao roubo de propriedade intelectual.

Precisa dizer quem é o campeão nessas categorias?

As circunstâncias da queda de Meng acrescentam toques cinematográficos: ele saiu de Lyon, na França, onde fica a sede da Interpol, e foi para a China no que parecia uma viagem regular.

Antes de “desaparecer”, mandou para a mulher o emoji de uma faca. A mensagem sinistra data de 25 de setembro. Ela deu uma entrevista desesperada, sem mostrar o rosto.

Segundo as reconstituições possíveis, nas circunstâncias, ele foi “levado”, ao desembarcar. No domingo, veio o anúncio oficial de que o ex-vice-ministro da Segurança Pública estava sendo investigado por receber suborno e outras traficâncias.

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Antes, foi divulgada uma carta de demissão. Para a China, era um sinal de prestígio internacional ter um representante no comando da Interpol e decisão de derrubá-lo, em circunstâncias dramáticas, indica que deve ser uma encrenca brava.

A detenção na surdina e o desaparecimento temporário são notavelmente parecidos não só com o caso da mais famosa atriz chinesa, Fan Bingbing, como dos bilionários e príncipes sauditas trancafiados no Ritz-Carlton de Riad em novembro do ano passado.

Yin e yang

O método aparentemente foi replicado na China. Até onde é possível saber, Fan Bingbing ficou num resort de luxo enquanto pensava na vida.

Reapareceu com uma multa equivalente a 130 milhões de dólares por sonegação fiscal e uma confissão ao melhor estilo autocrítica.

“Sinto vergonha e culpa pelo que fiz”, escreveu ela.

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E o que fez a atriz, conhecida por infindáveis personagens mitológicos com muito kung fu, fora sua participação em X-Men, e em praticamente todas as grandes campanhas de marcas estrangeiras interessadas no alucinante mercado de 1,4 bilhão de consumidores?

Na China, os contratos publicitários do tipo são conhecidos como yin-yang. Ou seja, têm duas faces: uma por cima do pano, outra por baixo.

Fazer um mea culpa não é absurdo nos acordos que trocam penas mais pesadas por multas, mas a declaração da atriz veio acompanhada de elogios quase abjetos ao Partido Comunista.

“Sem as grandes políticas do Partido, não existiria Fan Bingbing.”

Foi inevitável lembrar as confissões em massa dos mais fieis e fervorosos dirigentes comunistas expurgados nos Processos de Moscou, no auge do terror stalinista, ou durante a mais letal ainda Revolução Cultural.

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“Quanto mais inocentes fossem, mais mereciam morrer”, foi a cruel frase de Bertold Brecht sobre as intermináveis levas de líderes que confessavam tudo o que não tinham feito — colaborar ou espionar para os capitalistas, os nazistas ou os trotsquistas — e nada do que tinham — manchar as próprias mãos com expurgos e massacres.

A linda, delicada e milionária Fan Bingbing não tem nada dos altos dirigentes chineses que colocavam chapéu de burro e faziam autocrítica durante a Revolução Cultural. Se sonegou, incorreu em crime fiscal.

Também não dá para sentir muita pena dos bilionários sauditas que foram detidos na surdina por lavagem de dinheiro, suborno e extorsão, numa das grandes manobras feitas assim que o Mohammed bin Salman conseguiu ser nomeado como o novo príncipe herdeiro.

Entre eles, o mais conhecido investidor saudita, o príncipe Alwaeed bin Talal, e os três irmãos de Osama Bin Laden que controlavam a grande construtora da família. Sob pressão, acabaram passando o controle da empresa para o governo saudita.

Não foram os únicos. Como a monarquia absolutista tem instituições de fancaria, é difícil determinar se empresários corruptos foram justamente punidos ou simplesmente extorquidos. Talvez ambas as hipóteses estejam corretas.

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Time de assassinos

Mais difícil ainda é saber o que aconteceu com Jammal Khasoggi, um jornalista saudita de 59 anos que sumiu depois de ser visto pela última vez entrando no consulado em Istambul para tirar uma papelada de casamento.

O governo turco faz uma acusação mirabolante: Khashoggi foi morto por uma “equipe especial” de quinze homens enviada especialmente para sumir com ele sem deixar traços.

Nada é, evidentemente, o que parece. O governo turco é inimigo mortal do novo príncipe herdeiro e tem a prática sistemática de usar as mais extremas teorias conspiratórias. Tem também uma aliança com o Catar, uma petromonarquia em choque com os sauditas.

Khashoggi não é um jornalista qualquer: fez várias entrevistas com Osama Bin Laden, ainda na fase da luta contra os russos no Afeganistão. Foi também assessor de Turki Al-Faissal, o príncipe que comandou o serviço de inteligência saudita até praticamente a véspera dos ataques de Onze de Setembro. Mais conspiracionismo.

O jornalista desaparecido também já condenou o salafismo, a versão fundamentalista do Islã em vigor na Arábia Saudita.

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É justamente uma modernização bastante ousada desses pilares religiosos que o príncipe Bin Salman propõe.

O que não impediu que Khashoggi se transformasse em crítico do novo príncipe herdeiro — cheio de coisas a serem criticadas e de inimigos tão aptos nas artes da manipulação quanto ele. Foi para o autoexílio.

Como Bin Salman fez uma aliança de sangue com Donald Trump, muitas vezes o objetivo dos ataques a ele na verdade é o presidente americano.

Bin Salman seria capaz de mandar uma “equipe especial” de assassinos treinados para matar um inimigo político? Provavelmente. Faria uma cretinice de tal dimensão? É um bastante menos provável, embora não impossível.

Enquanto Jammal Khashoggi não reaparecer em um único pedaço, como aconteceu como os milionários do Ritz-Carlton (embora em muitos casos faltando partes importantes das fortunas), fica impossível cravar.

Sem estado de direito, instituições democráticas, poderes independentes e muito menos imprensa livre, países como a China ou a Arábia Saudita obnubilam as fronteiras entre atos legítimos contra a corrupção e brigas políticas internas.

Até quando uma gata como Fan Bingbing é pega bem no meio do ninho dos ratos, fica a dúvida se dançou numa operação normal ou foi usada como instrumento de propaganda.

Talvez o gatilho da investigação tenha sido a denúncia de um apresentador de televisão, mencionando a atriz como um exemplo dos contratos de gaveta.

Pagar impostos é uma contribuição execrada em todas as sociedades, mas existe um fator adicional para as “alternativas” ilegais no caso da China.

Como o país é nominalmente comunista e as altas remunerações são consideradas “moralmente condenáveis” pelo governo, os cachês dos artistas do cinema e da televisão foram limitados a 40% do custo de produção dos espetáculos para os quais são contratados. Dá-lhes, portanto, contratos yin e yang.

Imaginem se a moda pega.

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