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Banho de sangue: o apavorante ritual dos muçulmanos xiitas

Não dá para deixar de levar um susto com as autoflagelações por tradição religiosa; mas o significado político é obrigatoriamente inevitável?

Por Vilma Gryzinski
12 set 2019, 10h08
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  • Hoje, no mundo católico, apenas em alguns lugares das Filipinas ainda sobrevivem ritos como o flagelamento e a crucificação de  alguns fieis extremados.

    É claro que a Igreja não endossa a prática. Carregar uma cruz ainda persiste em alguns lugares.

    Existe comparação possível entre o ritual não tão antigo assim e os martírios públicos a que muçulmanos xiitas, principalmente do Iraque, Líbano e Afeganistão, se submetem?

    São mais gerais e impressionantes os castigos como bater na cabeça, flagelar a si mesmos com correntes ou látegos até arrancar sangue e fazer cortes de facão na própria testa ou na dos filhos pequenos.

    Os desfiles em massa, só de homens, lembram as antigas procissões, com bumbos e cornetas. A data também remete à morte de um grande mártir, Hussein Ibn Ali.

    Ao contrário do humilde e voluntário sacrifício de Jesus, o neto de Maomé e filho do sucessor ungido Ali Ibn Abi Talib com a única filha sobrevivente do profeta, Fátima, morreu em combate, numa disputa pela liderança da religião recém-criada.

    A morte, na Batalha de Karbala, hoje no Iraque, definiu o racha no islamismo que explodiu quando Maomé ainda nem tinha sido enterrado, no ano 632 danossa era.

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    O vencedor, Yazid, saiu consagrado como califa, o sucessor legítimo. A maioria dos fieis da nova religião endossou esta linha de sucessão e as interpretações desenvolvidas ao longo do tempo, a suna.

    São os sunitas, uma palavra que nasceu também com o tempo. Revelado numa tribo do deserto chamada Korreish, cujos líderes travaram as batalhas da sucessão, o islamismo se expandiu em velocidade espantosa.

    Uma minoria foi se definindo pelo oposto: o sucessor legítimo seria sempre Ali Ibn Abi Talib, impedido pela iniquidade dos inimigos de continuar no seu lugar de honra e por uma rebelião liderada pela madrasta, Aisha, uma das viúvas do profeta, com que foi casada quando criança.

    Além de sua escolha como imã, o primeiro deles, ter sido por ato divino, passaram a crer seus seguidores, Ali também tinha um laço de consanguinidade com Maomé: era seu primo.

    Fátima, portanto, era sua prima em segundo grau, uma união nada estranha para os costumes da época (Fátima, em Portugal, local das conhecidas aparições de Nossa Senhora, deve-se segundo a lenda a uma princesa moura da época da conquista árabe).

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    Ali, assassinado por um ex-seguidor, e a morte de seu filho Hussein, duplamente descendente do profeta, decapitado depois de caído em combate,  com a cabeça mandada para Yazid, tornaram-se cultuados como mártires, uma narrativa poderosíssima em qualquer religião, em especial a mesopotâmicas.

    Os seguidores do imã eram, literalmente, chamados de  Shia’tu Ali, origem da palavra xiita.

    As diferenças entre as duas correntes podiam ir desde debates teológicos eruditos e suas consequências a quem ambicionava ser o líder político-religioso de todos os muçulmanos até, evidentemente, a sua continuação por outros meios um tanto mais cruentos.

    PRÍNCIPE ENCANTADO

    Em duas ocasiões os xiitas assumiram a predominância. No império fatímida, cuja dinastia se considerava descendente de Fátima, dominaram o Oriente Médio e o Norte da Africa.

    O califado durou mais de um século, na virada do primeiro milênio, mas não resistiu à maluquice de um de seus últimos líderes, que mandou derrubar a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e, como um imperador romano, se declarou deus.

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    A outra ascensão xiita veio com os persas, hoje iranianos. Foi através deles que o xiismo se expandiu para o Afeganistão e a Índia.

    Os persas também praticavam, na época, “heresias”, do ponto de vista dos mandamentos religiosos que proíbem a reprodução da figura humana e de outras formas de vida, considerando que só Alá tem essa prerrogativa.

    Arroubos que misturam religião com atos de extremo teor emocional sempre foram mal vistos pelos sunitas, embora eles próprios tenham suas fases.

    Uma comparação habitual é entre os austeros protestantes tradicionais (não seus futuros ramos pentecostais, que falam em línguas e fazem cultos arrebatados) e católicos do Sul da Europa.

    Procissões e ritos da Semana Santa na Itália e na Espanha não eram muito diferentes das explosões vistas na Ashura, o décimo dia do mês de Muharram, equivalente a setembro.

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    Circulam até retratos de Ali como um príncipe lindo, um emir de barba bem aparada, olhos sedutores e keffyeh verde na cabeça (a cor do Islam), numa iconografia notavelmente parecida com a católica.

    Com uma diferença importante: há muitos séculos, a religião católica não é defendida ou propagada pela espada.

    Os ritos da Ashura são manifestações de fé e também de resistência. Tanto que foram proibidos durante a era Saddam Hussein, um sunita que reprimia com a brutalidade dos tiranos quem quer que fosse, mas foi especialmente rígido com os xiitas.

    Depois da intervenção americana, a situação se inverteu.

    Em vários sentidos, o Estado Islâmico é produto da resistência dos fundamentalistas sunitas, primeiro no Iraque e depois da Síria, com um apelo fortíssimo a muçulmanos de todos os países à guerra religiosa interna.

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    É quase inacreditável que as barbaridades mútuas, com destaque para o teatro de horrores desenvolvido pelo ISIS por e para a geração das redes sociais, tenham acontecido e continuem a acontecer no século 21.

    A elite religiosa do Irã não endossa as flagelações sanguinolentas, embora bater nas costas com correntes – sem arrancar sangue – continue a seu um hábito praticado nas procissões.

    As encenações da Batalha de Karbala, incluindo o incêndio de uma grande tenda, são enormes eventos populares.

    Os mais extremados são os iraquianos, talvez, inclusive, pelo período em que foram proibidos de comemorar a Ashura.

    Ver esses ritos encenados em lugares como a Alemanha, com seu grande número de imigrantes vindos recentemente do Iraque e do Afeganistão, expõe em enorme choque cultural.

    Até o mais tolerante dos alemães, daqueles que acham que o país está sendo culturalmente enriquecido por tantos estrangeiros de origem oriental ou norte-africana, ficam um pouco ressabiados quando veem mulheres cobertas da cabeça aos pés de preto confinadas na periferia, enquanto homens se flagelam no centro, com a música e os cânticos insuflando o paroxismo.

    Nos países onde o conflito entre sunitas e xiitas é mais exacerbado, são comuns atentados praticados durante a Ashura.

    A mesquita de cúpula dourada onde se acredita que foram enterrados Ali e seu filho Hussein, na cidade de Samarra, foi destruída por um catastrófico atentado em 2006. Dois minaretes escaparam ilesos, mas vieram abaixo com outro carro-bomba, no ano seguinte. Tudo foi reconstruído.

    Este ano, o pior incidente foi uma correria em Karbala, com 31 pessoas mortas pisoteadas.

    Quase tão importante para os xiitas esta semana foi o bombardeio da “ilha do ISIS”, um foco de resistência para onde fugiram militantes do Estado Islâmico.

    Militares iraquianos xiitas assistiram encantados aviões americanos despejarem 36 mil quilos de bombas sobre seus inimigos mortais na ilha no rio Tigre.

    A rivalidade que começou há quase 1.500 anos não está diminuindo nem um pouquinho.

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