Daria um estudo sobre o marketing ao contrário: como destruir um formidável patrimônio imaterial, o soft power que uma seleção vencedora da Copa do Mundo e um jogador prodigioso como Messi criaram para a Argentina.
Os incidentes da Argentina nas Olimpíadas são a prova dessa deterioração, causada por uma musiquinha extremamente racista que data da época da Copa do Mundo, mas foi ressuscita pela seleção argentina depois de conquistar a Copa América, no último dia 15.
A vitória da seleção nacional tinha sido contra a Colômbia, mas mesmo assim os jogadores, em live feita dentro do ônibus por Enzo Fernández, entoaram uma musiquinha da época da final da Copa do Mundo contra a França, com insultos a jogadores negros e ao astro Mbappé.
É, resumidamente, execrável. Algumas partes publicáveis, embora repugnantes: “Escute, rola a bola/ Jogam na França, mas são todos de Angola”; “A mãe é nigeriana; o pai, camaronês/ Mas no documento, nacionalidade: francês”. No meio dos versos, referências a preferências sexuais de Mbappé, que namorou uma mulher trans. O pai do jogador francês também é de Camarões.
Os jogadores da seleção cantaram com entusiasmo a música de uma parte da torcida no Mundial. O caso respingou até sobre Messi, que sempre pairou acima de encrencas assim, com uma reputação impecável, pelo menos para o público, que o ajuda a faturar mais ainda na posição de maior jogador do mundo.
“EU TE BANCO”
Em vez de repudiar as ofensas, ou simplesmente ficar calado e esperar passar a onda de rejeição (ou de lamentável aprovação), Javier Milei demitiu o subsecretário de Esportes, Julio Garro, por dizer numa entrevista que Messi e o presidente da Federação Argentina de Futebol, Chiqui Tapias, deveriam pedir desculpas pelo cântico racista.
“Isso não tem nada a ver com que pensamos”, afirmou Milei em particular. Pelo X, dobrou a aposta: ninguém diz à seleção argentina ou a Messi o que devem fazer, proclamou. Uma cretinice abjeta que se aproxima do nível de afirmar que um torcedor frustrado pode bater na mulher se for daquele famoso time brasileiro.
A vice-presidente Victoria Villarruel foi, tolamente, ainda mais longe, diante das reclamações de organismos franceses. “Nenhum país colonialista vai nos amedrontar por uma música de torcida nem por dizer as verdades que não querem admitir. Basta de simular indignação, hipócritas”.
Ela ainda foi suficientemente idiota para dizer “Enzo, eu te banco. Messi, obrigada por tudo”.
PERIFERIAS MESTIÇAS
Enzo, ao contrário, percebeu logo o tamanho da besteira e apresentou um total e absoluto pedido de desculpas. Detalhe: sustentou que não era de seu “caráter” fazer ofensas raciais e sexuais, embora tenha sido isso exatamente o que fez. Motivo: viu sua carreira no Chelsea ameaçada pelo comportamento execrável e o repúdio de colegas negros.
Demba Ba, ex-jogador do Chelsea, tuitou: “Argentina, terra de refúgio de fugitivos nazistas. A partir de 1945, Perón abrigou criminosos de guerra. E vocês ficam surpresos”.
Muitas vezes, argentinos têm problemas em ver a própria diversidade racial, com forte influência indígena e componentes africanos. É como se o centro de Buenos Aires representasse um país inteiro, repleto de descendentes de italianos, espanhóis e outros imigrantes europeus, sem suas periferias mestiças.
Um editorial do Clarín lembrou a campanha antirracista de Vinicius Jr. e comentários feitos na Argentina a respeito: “Aqui tem gente que continua repetindo que não existem esses problemas porque ‘não há negros’”.
BRASILEIROS SILVÍCOLAS
Como tantas outras formas de preconceito, o retorno do reprimido é forte.
Até o ex-presidente argentino Alberto Fernández, vendido com um homem afável e esquerdista consciente, derrapou no preconceito explícito ao dizer, em 2021, que “os brasileiros saem da selva”, atribuindo a frase ao poeta mexicano Octávio Paz.
Na verdade, a citação integral do Nobel de Literatura diz: “Os mexicanos descendem dos astecas, os peruanos, dos incas, e os argentinos, dos navios”.
A frase sobre os brasileiros silvícolas vem de uma música do veterano roqueiro argentino Litto Nebbia.
Alberto Fernández depois teve a decência de pedir desculpas, embora com o abominável adendo do “a quem se sentiu ofendido”.
Essa parte das desculpas coube, no caso do futebol argentino, à irmã e mais influente assessora do presidente, Karina Milei. Ela foi à embaixada francesa em Buenos Aires, falar pessoalmente com o embaixador Romain Nadal e salvar uma visita do irmão que deveria pairar acima de encrencas, para a abertura dos Jogos Olímpicos hoje (veja a cobertura especial nesse site).
Milei não tem a proximidade “conjugal”, como já foi definida, do presidente Lula da Silva com Emmanuel Macron, mas não precisa comprar briga com ele.
QUIMIOTERAPIA ECONÔMICA
O presidente argentino virou um fenômeno mundial no circuito internacional dos partidários do liberalismo econômico. Fala com paixão nunca vista por essa turma sobre seus inspiradores e mentores no espírito da tradição da escola austríaca e de seus seguidores americanos.
Se seu projeto profundamente transformador de diminuição do Estado e incentivo à iniciativa privada der certo, será consagrado como um gênio visionário. Se der errado, o efeito é zero para os estrangeiros que hoje o aplaudem. Será apenas mais um fracasso da Argentina, tão pródiga nesse tipo de coisa.
O processo todo ainda nem chegou perto do fim do começo, com vários dados animadores, em especial em termos de diminuição da inflação e superávit fiscal, mais alguns bem negativos – a quimioterapia econômica pode matar o paciente – e outros ainda em desenvolvimento.
Faz parte do plano de Milei atrair grandes investidores para colocar dinheiro nos fabulosos recursos da Argentina, especialmente as reservas de gás e de lítio, além de uma população com bom nível educacional que pode interessar ao mundo high tech.
PEDÁGIO DA CORRUPÇÃO
O problema, claro, é a instabilidade. Que garantias existem de que a transformação econômica
arrancará?
E que um novo governo, num clássico do subdesenvolvimento, não mude tudo e comece a nacionalizar, taxar, regular com regras insanas e sufocar investimentos em grande escala?
Sem falar naqueles conhecidos pedágios cobrados pela corrupção?
Aumentar em vez de diminuir a imagem de instabilidade, com um presidente que se mete em briga de futebol, e ainda por cima do lado errado, não ajuda em nada o país.
CAMPEONATO DE RACISMO
Os milenaristas podem adorar viver num mundo de provocações constantes, mas não é isso que trará o dinheiro do qual o projeto de Milei depende para ser bem sucedido e arrancar a Argentina de tantos e variados buracos escavados ao longo de sua história.
Qual país grandes investidores irão preferir, Argentina ou Brasil? Da resposta a essa pergunta depende, entre outros fatores, o lugar que os respectivos presidentes, tão antagônicos, ocuparão nos anais da história.
Embora ambos sejam fanáticos por futebol, com as viscerais paixões nacionalistas que provoca, e cometam absurdos em nome dele, a coisa vai muito além de dois times correndo atrás da bola.
Detalhe: para consternação de tantos argentinos decentes, a musiquinha indecente foi cantada numa homenagem a Enzo Fernández no intervalo de uma partida de futebol, no domingo passado. O jogador que a entoou tão entusiasticamente no ônibus da seleção não deve ter ficado nada satisfeito por ter conquistado o pódio no campeonato de racismo.
PERDA DE PATRIMÔNIO
Como todos os outros jogadores argentinos, ele perde patrimônio moral e publicitário com isso. Passa a valer menos, com menos empresas querendo ver suas marcas associadas a eles.
As vaias na França, tanto à Seleção Sub 23 de futebol quanto à de rúgbi, refletem o repúdio dos torcedores franceses e de países africanos, geralmente inimigos, agora unidos pela maneira repugnante como foram tratados por argentinos.
“Eu acho divertido”, disse sobre as vaias, impensadamente, o jogador de rúgbi Marcos Monetta.
“Não sei se devem ter raiva por Messi ou pelo Mundial”.
Quem acabará rindo no final?