“Eu sou Deus em El Salvador.” Com seis palavras, o caudilho salvadorenho Maximiliano Hernández Martínez resumiu a profunda doença narcísica que assola políticos de todos os quadrantes, com especial ênfase na América Latina, com seu longo histórico de líderes populistas. O ditador salvadorenho (poder absoluto: 1931 a 1944) estava respondendo a um bispo que lhe pedia, em nome de Deus, para parar com uma das matanças periódicas que assolavam a América Central. O espetáculo autocrático foi revivido por Nayib Bukele em sua posse. Endossado por uma votação maciça, ele fez da cerimônia um show do caudilho obsessivo compulsivo: vestiu todo mundo de azul, a cor nacional, inclusive o forro dos mantos até os pés dos soldados perfilados com submetralhadoras na mão sob o calor tropical. Antes da posse, combinou o azul royal do lencinho no paletó com a cor das meias. No ápice, apareceu com uma espécie de jaquetão da Academia de Letras, com bordados dourados na manga e na gola estilo militar.
O que deu na cabeça de Bukele para se fantasiar de generalíssimo? O presidente salvadorenho reeleito — contra o que estabelece a Constituição — é um teste ideológico: a direita exalta a nada menos que inacreditável forma como controlou a criminalidade, a esquerda se contorce de ódio e exagera nas denúncias de abusos. Há uma terceira opção: reconhecer o que ele fez para tirar o país do domínio do crime organizado e, também, identificar suas derivas autoritárias. Eleger 54 dos sessenta deputados do Congresso Nacional é realmente de dar ideias na cabeça de qualquer um — em especial a de narcisistas atingidos pelo complexo de Deus. Essa é a síndrome de indivíduos que se consideram superiores e acreditam ter muito poder, infalibilidade e influência.
Só nessa semana, encerrou o seu ciclo o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, convicto de que aplicou um programa chamado nada menos do que Quarta Transformação, em escala comparável à independência e à Revolução Mexicana. Na Índia, foi reeleito Narendra Modi, que pratica ioga, meditação e abstinência sexual. Mas nem pensar em sublimar o ego. Note-se que os políticos citados são populares e têm obras para mostrar. Estão à frente de dois extremos ideológicos como o colombiano Gustavo Petro e o argentino Javier Milei (“Sou o expoente máximo da liberdade a nível mundial”, definiu-se, modestamente). Tão diferentes politicamente, são parecidos no conceito exaltado que fazem de si mesmos e na desqualificação terminal dos adversários — mais triste no caso do argentino, que, como libertário, deveria ter uma posição acima dessas baixarias.
Rafael Trujillo, o caudilho de manual da República Dominicana, mandou instalar num morro de São Domingos um letreiro com a máxima: “Deus e Trujillo”. Inspirava um culto quase messiânico entre católicos e seguidores de cultos afro. O antecessor caudilhesco de Bukele, o que se achava Deus em El Salvador, também era dado a rituais alternativos e respondeu certa vez a um representante da comunidade americana no país que pretendia oferecer sandálias aos alunos das escolas públicas: “É bom que as crianças andem descalças. Assim recebem melhor os eflúvios benéficos do planeta, as vibrações da terra”. Deus nos livre dos que se acham Ele.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896