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Corrupto ou revolucionário

Mudar a ordem política pode ser pior do que roubalheira?

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 11h10 - Publicado em 7 jan 2023, 08h00
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  • Os 100 anos do tratado de criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em 30 de dezembro de 1922, só foram lembrados pelos muito nostálgicos ou por quem traça paralelos entre a Rússia atual de Vladimir Putin e o império vermelho. Apesar do banho de sangue que o precedeu, o nascimento da URSS era visto na época como o caminho para a realização de uma utopia mesmo por quem não confiava no projeto bolchevista. O novo mundo não poderia ser pior do que o velho que substituía, imaginavam. Numa entrevista bizarra, da qual poucos hoje se lembram, a H.G. Wells, Lenin ouviu o escritor de ficção científica insistir que “a própria alma do povo russo tinha de ser reformatada para aceitar o novo mundo”.

    “Volte aqui e veja o que teremos feito na Rússia em dez anos”, respondeu Lenin. Ele morreu muito antes disso, deixando ao sucessor todos os fundamentos da máquina totalitária sem precedentes em que a União Soviética se transformaria. O horror teria sido menor se os bolchevistas, em vez de uma utopia maximalista que mudaria o mundo, a história e o homem, quisessem apenas carona para uma nova forma de governo, sem o arcaísmo da Rússia czarista? Ou se aspirassem a ter apartamentos melhores, escolas no exterior para os filhos e férias na Côte d’Azur, como tantos russos mais bem posicionados da era Putin? Se fossem simplesmente corruptos, dispostos a muita coisa para melhorar de vida, em vez de revolucionários, dedicados a fazer tudo para torturar a realidade até que se moldasse ao que queriam?

    “Almas que circulam pelos corredores do poder costumam dizer que ‘o que nos salva é a corrupção’ ”

    Almas mais escoladas que circulam pelos corredores atapetados do poder costumam dizer que “o que nos salva é a corrupção”. Ou, quando não querem parecer cínicas demais, o pragmatismo, a governabilidade, o “diálogo”. Esse debate que sempre volta foi remodulado em 1990 por dois gênios da literatura mundial, Mario Vargas Llosa e Octavio Paz. Numa palestra, o peruano definiu o sistema mexicano, com o domínio do Partido Revolucionário Institucional, como “a ditadura perfeita”, pois preservava aparências democráticas e se reproduzia invariavelmente (o que não disse, mas todo mundo sabia, foi que cada presidente tinha sua enorme cota de subornos desde que acatasse o princípio do mandato único por seis anos). Na plateia, o mexicano Octavio Paz contestou. O PRI, disse, havia na verdade instituído a hegemonia de um só partido, não uma ditadura convencional. E acrescentou: “Foi criado pelo governo como instrumento contra césares revolucionários, que podem, por exemplo, se chamar Fidel Castro”.

    No clássico Spartacus, o filme de Stanley Kubrick com roteiro do lista negra Dalton Trumbo, o senador romano interpretado por Charles Laughton faz uma espécie de elogio da corrupção quando um colega incensa o candidato a tirano Crasso como o único homem de Roma a escapar das práticas corrompidas da República. “Eu toleraria um pouco de corrupção, mas não a ditadura de Crasso e o fim da República”, diz.

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    Melhor tolerar “um pouco” de corrupção do que enfrentar césares revolucionários deveria ser um dilema que nenhum país precisa enfrentar. Mas ele vive flutuando à nossa volta.

    Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823

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