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Crespúsculo dos deuses: devoluções podem “desidratar” grandes museus

Já está acertado o acordo que levará de volta à Grécia as prodigiosas esculturas do Partenon, num processo que esvaziará o British Museum

Por Vilma Gryzinski 5 jan 2023, 07h19
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  • Dá para imaginar entrar no British Museum sem parar diante do negro fascínio da Pedra de Roseta, o fragmento que decifrou o Egito antigo, e depois ir direto ver as esculturas do Partenon, o ápice jamais superado da civilização humana?

    Pois o que parecia impossível, tendo se tornado nos últimos anos quase inevitável, diante de mudanças culturais profundas, já está virando realidade.

    O British Museum fez um acordo com a Grécia de “intercâmbio cultural” do conjunto célebre, conhecido na Inglaterra como “os mármores de Elgin”, referência ao conde que os removeu do templo original, levando-os para seu próprio castelo.

    Mesmo à época – entre  1801 e 1812 -, quando o império britânico parecia infalível, a remoção foi contestada e virou uma causa nacional à medida em que a Grécia conquistava a independência do Império Otomano e refazia a identidade nacional.

    Os mármores são propriedade do British Museum, comprados pelo equivalente, hoje, a cinco milhões de libras, depois que um divórcio caro arruinou os planos de lorde Elgin de doá-los à nação. Ele havia gastado o dobro para removê-los da Grécia, num processo que levou parte dos fragmentos de 2 500 anos ao fundo do mar, num naufrágio dramático. Demorou dois anos só para recuperar esse carregamento.

    O caso foi tão discutido desde o começo que existe uma lei específica, aprovada pelo Parlamento – a última instância – proibindo a devolução da obra de Fídias, o maior escultor da história. Daí a alternativa do “intercâmbio”, criada nas negociações comandadas pelo atual presidente do museu, George Osborne, ex-ministro da Fazenda durante o governo conservador de David Cameron.

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    É difícil imaginar que, uma vez enviados de volta a seu berço, a Grécia os devolva. O Museu da Acrópole foi construído especialmente para acomodar esculturas do Partenon que ficaram no país, deixando um espaço para as que estão no British.

    O argumento do British sempre foi que o conjunto escultórico da frisa de 72 metros que circundava o mais célebre de todos os templos ficava aberto à visitação de pessoas do mundo inteiro – e sem pagar ingresso, agradecem todos os turistas -, como compete a um patrimônio da humanidade.

    Sucessivos governos gregos não se comoveram com o argumento. É impossível dizer que é injusta sua reivindicação. Mas o que empurrou a devolução foi o revisionismo histórico, quando não histérico, associado ao pensamento do novo marxismo que exige condenar, em massa e por princípio, tudo o que as sociedades brancas, colonialistas, escravistas e um vasto etc, fizeram.

    No Reino Unido, esse processo é chamado de “descolonização”.

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    O primeiro passo para uma devolução que, se levada adiante, esvaziará grandes museus como o British e o Louvre, foi dado pelos ingleses com os Bronzes de Bênin. O fabuloso conjunto de placas de bronze (vindo da Europa e trocado por escravos), datadas de diferentes séculos, ornamentava o palácio do rei de Bênin, o Obá, e foi deliberadamente saqueado, em represália pelo massacre de uma delegação britânica, em 1897.

    O imperialismo funcionava assim. E os vencedores levam a fama – e o ônus. 

    “O fato de que os objetos foram tirados de um reino da África Ocidental que dificilmente poderia ser confundido com uma pacífica comunidade vegana –  o Bênin enriqueceu com o tráfico de escravos no Atlântico e a matança de elefantes; praticava sacrifícios humanos e possivelmente canibalismo ritual – não sacia o apetite dos que exigem sua devolução”, escreveu Michael Mosbacher na Spectator.

    Fator complicador: o reino original ficava em parte no que hoje é a Nigéria e alguns dos bronzes devolvidos na década de cinquenta reapareceram no mercado clandestino de obras de arte.

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    No British, muito mais do que na Nigéria, pessoas de todas as origens podem conferir a sofisticação da obra de gerações de artistas africanos. Um argumento obviamente inválido para intelectuais como Dan Hicks, professor de arqueologia e curador do Pitts River Museum, de Oxford.

    Hicks defende o puro e simples “desmantelamento físico da infraestrutura branca” de todos os museus antropológicos e etnográficos (lá se vai o lindo Quay Branly de Paris; e, claro, lá se vão instituições de grandes universidades como Oxford e Cambridge, que têm comitês de descolonização dispostos a julgar o passado por critérios do presente até suas consequências finais – o que implicaria no fechamento das próprias faculdades milenares).

    A chamada Wellcome Collection, parte de um museu em Londres dedicado a artefatos médicos, já fechou inteiramente, em novembro, uma ala específica voltada para curandeiros – ou praticantes de medicina tradicional, antes que reclamem. A exposição de artefatos colecionados e doados por Harry Wellcome, pioneiro da indústria farmacêutica, “perpetua uma versão da história médica que é baseada em teorias racistas, sexistas e capacitistas”.

    E se o Egito quiser de volta os tesouros que preenchem salas e mais salas do British e do Louvre? A Alemanha devolveria a Nefertiti de sublime beleza?

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    Na verdade, já existe um movimento nesse sentido, pedindo, entre outras coisas, o retorno da Pedra de Roseta, “um símbolo da violência cultural ocidental contra o Egito”, segundo a egiptóloga Monica Hanna.

    A pedra com inscrições em três escritas – hieróglifos, demótico (uma versão mais fácil da “língua dos deuses”) e grego – era usada como material de construção numa fortificação em Rashid (Roseta, para os franceses que a descobriram). Os britânicos derrotaram o exército napoleônico e levaram a lápide que abriria as portas para o mundo da linguagem perdida dos hieróglifos.

    Napoleão provavelmente foi o maior saqueador de todos os tempos, considerando-se que teve acesso maior ainda do que os nazistas a muitos dos tesouros mais preciosos do mundo. Basta andar pelo Louvre para ver.

    Símbolos de uma quase eternidade, contraditoriamente os mármores do Partenon evocam a impermanência da vida e a fragilidade das instituições humanas. Originalmente, eram pintados em cores vivas. A parte mais importante, o nascimento da deusa Atenas saída da cabeça de Zeus, foi removida provavelmente quando o templo virou uma igreja cristã, no século VII – depois virou mesquita. A prodigiosa estátua de Atenas, em ouro e marfim, já tinha sido saqueada há muito tempo.

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    Restaram as deusas sem cabeça, sobreviventes da explosão e do incêndio que derrubou as paredes e o teto do templo transformado em fortaleza e paiol pelos otomanos em guerra, atingido por um canhão veneziano em 1687.

    Transformar o mármore em túnicas tão esvoaçantes que parecem flutuar e, por baixo delas, os corpos pulsantes de vida é um prodígio que atravessou a história, inspirou grandes artistas e criou um padrão insuperável de beleza. Palavra esta que hoje é coisa de museu. Se isso ainda existir.

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