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Da arte de saber deixar o poder

Em democracias, é fundamental a garantia de que líderes se aposentem

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 4 jun 2024, 11h28 - Publicado em 29 out 2022, 08h00
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  • Uma das maiores provas do avanço da China foi a “aposentadoria” de Deng Xiaoping, o pequeno grande gênio das reformas que tiraram o país da miséria e o transformaram numa potência que aspira à hegemonia planetária. Havia uma corrente política furiosamente contra a abertura para a economia de mercado, mas o tongzhi Xiaoping, o simples título de “camarada” pelo qual queria ser tratado, conseguiu se aposentar e morrer de morte natural em 1997. Ocupar o poder e deixá-­lo sem expurgos ou fuzilamentos é um dos sinais de evolução política em países com sistemas totalitários. Na antiga União Soviética, Nikita Khrushchev foi o primeiro líder a perder o poder, mas não a vida, aposentado numa dacha por mais dez anos, até 1971. O próprio Khrushchev, com a falsa imagem de camponês bonachão, havia tramado o que foi talvez o mais perigoso expurgo interno da história recente: o de Lavrentiy Beria, o monstro que comandava os serviços secretos, tendo chegado a acreditar que seria o sucessor de Stalin.

    “‘Apertar o botão’ virou sinônimo de expurgo, comum em regimes brutais como o do Iraque de Saddam Hussein”

    Correndo o enorme risco de conspirar contra o homem que tinha todo o aparato repressivo na mão, Khrushchev e Georgy Malenkov convocaram uma reunião da cúpula do Partido Comunista. “O que está acontecendo, Nikita?”, perguntou Beria, estarrecido, quando Khrushchev desfechou uma fileira de acusações. Antes que fosse aprovada uma moção demovendo-o do cargo, Malenkov entrou em pânico e apertou o botão. Parece paródia de filme de espionagem, mas foi exatamente assim que o marechal Georgy Zhukov, o herói da II Guerra, e um grupo de generais entraram no salão e levaram Beria preso. Foi executado com um tiro na cabeça pelo general Pavel Batitsky.

    “Apertar o botão” acabou virando sinônimo de expurgo, comum em regimes brutais como o do Iraque de Saddam Hussein, onde ele fez uma reunião do Partido Baas para se livrar de 68 dirigentes (os que escaparam da morte receberam armas para executar os colegas menos afortunados), e o da Coreia do Norte, com o tio de Jong-un sendo arrastado por militares de uma reunião do politburo. O tio caído em desgraça seguiu seu destino natural e foi fuzilado. Para a China, é uma humilhação ter vivido seu dia de Coreia do Norte com a grotesca retirada do ex-presidente Hu Jintao do lugar de honra que ocupava à esquerda de Xi Jinping. Covid, senilidade, expurgo? Vamos precisar de paciência até que a verdade aflore — se o fizer, algum dia. A consagração de Xi Jinping, que não quer saber de aposentadoria, acabou jogada no ridículo. Choveu na parada dele, como dizem os americanos, os inventores do modelo-­padrão para ex-presidentes. Contrato milionário para escrever memórias (e fazer série na Netflix, no caso do casal Obama), palestras com cachê altíssimo para garantir uma vida segura e um chapéu discretamente passado para erguer uma biblioteca presidencial. Donald Trump, que está sendo um ex-presidente pior do que foi presidente, quando tinha a apresentar dados econômicos muito sólidos, bagunçou o modelo, com problemas na Justiça que ainda estão se desdobrando. No Peru, os cinco últimos presidentes foram denunciados, condenados ou fugiram. Um se suicidou. O atual, Pedro Castillo, vai pelo mesmo caminho. Pode ser uma democracia funcional? Claro que não. Ex-presidentes presos são um atestado de falência institucional porque demonstram que a Justiça funciona ao combater poderosos, mas o sistema é podre.

    Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813

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