A partir de hoje, funcionários empregados pela prefeitura de Nova York podem ser colocados em licença não remunerada se não mostrarem prova de vacinação.
A exigência varia entre cidades e estados, mas como existe também um decreto federal, vai chegando a hora em que muitos milhares de bombeiros, policiais, socorristas, militares, pilotos, empregados de indústrias vitais como a de armamentos e outros refuseniks começarão a ser dispensados.
Pelas regras do governo federal, toda empresa que tem acima de cem funcionários precisa exigir o atestado de vacinação, sob risco de multas crescentemente pesadas.
Associações empresariais apelaram ao governo para postergar a obrigatoriedade até depois das festas de fim de ano, temendo perder mais funcionários num período que coincide com o aumento do movimento e com a impressionante escassez de mão de obra em diversos setores da economia – sobram empregos nos Estados Unidos e faltam pessoas para preenchê-los, num dos efeitos mais inesperados da pandemia.
É difícil entender, do ponto de vista do Brasil, onde há pessoas que brigam para passar na frente da fila da vacina e não para ficar fora dela, por que tantos americanos recusam a vacina. Ou no mínimo sua obrigatoriedade.
Desconfiar de tudo o que vem do governo, principalmente quando é obrigatório, faz parte da mentalidade americana – e os libertários acham que isso colaborou para criar a maior potência da história ao fortalecer o espírito comunitário local e a responsabilidade individual.
Mesmo com a fartura de vacinas, arquitetada durante o governo Trump e mais insuflada ainda com Joe Biden, a porcentagem de americanos vacinados com duas doses é de 58% – contra 68% dos britânicos, 79% dos espanhóis e 85% dos portugueses.
Em abril, um em cada cinco americanos dizia que não tomaria a vacina contra a Covid-19 de jeito nenhum. Com a obrigatoriedade, a rejeição diminuiu, mas ainda persiste, especialmente, e talvez estranhamente, entre profissionais que estão na linha de frente de profissões arriscadas.
A oposição às vacinas é mais arraigada entre os cidadãos que se identificam com a direita, categoria na qual se inclui a maioria dos agentes da lei. A politização da pandemia e todos seus acessórios – máscaras, confinamento, vacinas – é mais extrema ainda nos Estados Unidos do que no Brasil. Em várias esferas, recusar a vacina se tornou um modo de dizer “Dane-se, Joe Biden”.
Como lidam diretamente com o público, muitas vezes fisicamente, os policiais formam uma categoria especialmente afetada pela Covid-19. Mais de 460 morreram da doença entre em 2020 e 2021 – quatro vezes mais dos que tombaram atingidos por armas de fogo no cumprimento do dever.
Embora os números tenham mudado, uma pesquisa feita em dezembro do ano passado mostrou o índice de rejeição: 38% disseram que não tomariam a vacina de jeito nenhum.
Sindicatos e associações de policiais das principais cidades americanas contestaram na justiça a obrigatoriedade da vacinação e autoridades judiciárias de estados governados por republicanos vão fazer o mesmo. Bombeiros de Los Angeles estão processando a prefeitura pelo prazo “radical e revoltante” – o último dia 20 – para que todos se vacinassem.
Os números são americanos: cada um dos 871 signatários da ação pede indenização de 2,5 milhões de dólares de indenização, o que daria um total de 2,1 bilhões na conta do município. E o chefe de polícia da cidade, Alex Villanueva, disse que não aplicaria a obrigatoriedade, avisando que poderia perder “de 5% a 10% da força de trabalho da noite para o dia” se levasse a ordem ao pé da letra.
Em Nova York, centenas de bombeiros foram protestar em frente a residência oficial do prefeito, Bill de Blasio. Quatro levaram a rebeldia um pouco adiante: foram com um carro de bombeiros até o gabinete de um senador estadual e pediram para falar com ele. Estão suspensos.
O índice de vacinação dos bombeiros da cidade é de 77%, o mais baixo entre trabalhadores da linha de frente.
O leque de americanos que não querem ser inoculados é vasto, indo de adeptos do estilo naturalista de vida que desconfiam das vacinas de forma geral a veganos e até LGBTs contra a obrigatoriedade da inoculação.
Uma das personalidades mais conhecidas é Robert Kennedy Jr., filho do senador assassinado, que foi recentemente banido do YouTube. Já estava fora do Instagram desde o começo do ano. O advogado identificado com ideias esquerdistas já era um dos maiores adeptos da tese rejeitada em massa pelos especialistas que associa a vacina tríplice com o aumento de casos de autismo. A pandemia o colocou na linha de frente do movimento antivacinação.
Kennedy Jr. é da turma das teorias conspiratórias. Ele acha que Sirham Bishara Sirham não foi o assassino do seu pai, apesar da enorme quantidade de pessoas que testemunharam os disparos letais na cozinha do hotel Ambassador de Los Angeles em 5 de junho de 1968. Chegou a visitar o assassino na prisão, enquanto era aguardado no carro pela mulher, a atriz Cheryl Hines, que faz o papel da esposa de Larry David em Curb your Enthusiasm. Mundo estranho.
A recusa à vacinação obrigatória também pode prejudicar as Forças Armadas. Na Força Aérea, a buraco pode chegar a 11 mil integrantes que, em nome da convicção na rejeição à vacina, estão dispostos a sacrificar a carreira e perder o direito a pensões, atendimento médico e outros benefícios.
Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, a probabilidade de morte por Covid é onze vezes maior para os americanos não vacinados; a de hospitalização, dez vezes.
Mas os “hesitantes”, como são chamados – fora palavras mais fortes como antissociais, malucos, e fanáticos -, continuam a desconfiar de uma vacina nova e de um governo que quer obrigá-los a tomá-la. Muitos acham, contra as evidências, que correm um risco maior de sequelas da vacina do que da Covid. Enxergam na contaminação e na hospitalização de vacinados provas de que a inoculação não funciona.
Demitir ou dar baixa aos que recusam a vacina soa exagerado para muitos que não compartilham essas ideias e se a punição for muito grande nas fileiras de instituições respeitadas, como as Forças Armadas, pode ter um efeito negativo na opinião pública.
O que é pior: ser atendido numa emergência por um policial ou um bombeiro não vacinado ou não ter atendimento nenhum, por escassez de pessoal? Nos próximos dias, muitos americanos terão a resposta.