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Ironias da história

Às vezes, nem mesmo há explicações básicas para assassinatos

Por Vilma Gryzinski 20 jul 2024, 08h00
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  • Sic semper tyrannis”, assim sempre acabam os tiranos, proclamou John Wilkes Booth depois de ferir mortalmente na cabeça o venerado Abraham Lincoln. Ou disse que “a Virgínia está vingada”? Ou não disse nenhuma dessas coisas? As dúvidas sobre o assassinato em 14 de abril de 1865 atravessaram o tempo. Booth era uma espécie de Brad Pitt da época: um ator bonito, capaz de hipnotizar o público. Era também escravagista e queria vingar a derrota dos estados rebelados do Sul numa guerra civil que matou mais de 600 000 americanos — muito mais do que qualquer outro conflito de que os EUA participaram. A plateia do Ford’s Theatre testemunhou o assassinato ou viu Booth saltar do camarote presidencial — quebrou a perna esquerda na queda e foi baleado doze dias depois no celeiro de uma fazenda de fumo, numa caçada alimentada pela revolta popular e pelo prêmio de 100 000 dólares (2 milhões em valores de hoje). Por que tantas dúvidas sobre um assassinato amplamente testemunhado, comparável, nos termos da época, ao atentado contra Trump?

    Por que os magnicídios provocam esse tipo de reação de desconfiança: estarão “eles” dizendo a verdade? Há algum truque para nos enganar? É a desconfiança instintiva diante das autoridades — e o desejo de encontrar explicações para o inexplicável. Já foram escritos mais de 40 000 livros sobre John Kennedy e continuamos desconfiando da inverossímil trajetória da “bala mágica” que atingiu o presidente na cabeça e deu várias voltas até ferir gravemente o governador do Texas, John Connally, entrando e saindo sete vezes dos corpos dos dois homens. Lee Harvey Oswald agiu sozinho? Era um agente cubano? Foi plantado pela CIA? Por que não desconfiar que simplesmente foi treinado na URSS, onde morou durante três anos por simpatia ideológica? E por que um dono de boate, Jack Ruby, conseguiu assassiná-lo diante de dezenas de policiais, em outra reviravolta inacreditável?

    “Já foram escritos 40 000 livros sobre Kennedy e ainda desconfiamos da inverossímil trajetória da bala”

    Poucas coisas impedem um assassino determinado a matar uma grande figura pública. Nem a segurança israelense salvou Yitzhak Rabin dos dois tiros de Beretta disparados pelo fanático ultranacionalista Yigal Amir em 1995. Tetsuya Yamagami fabricou em casa a arma com que matou o ex-primeiro-­ministro japonês Shinzo Abe, durante um comício numa rua da cidade de Nara, em 2022. Note-se que o Japão tem um índice de 0,7 homicídio por 100 000 habitantes e é em tudo diferente da culturalmente armamentista sociedade americana (17,2 é a taxa de homicídios por lá — 30,8 no Brasil).

    Detalhe irresistível: o homem que matou Lincoln era filho de um ator britânico chamado Junius Brutus Booth — exatamente o nome do líder da conspiração para assassinar Júlio César. Do qual se desconfiava que fosse filho porque sua mãe, Servília, fora amante de César. Mas só depois do nascimento do rebento assassino, dizem os historiadores. Marco Antônio mandou para ela as cinzas do filho, que se suicidou ao perder a batalha de Filipos, vingança final contra os conspiradores. Dizem que o assassino também proclamou “Sic semper tyrannis” ao apunhalar César, mas Plutarco achava que ele não tivera tempo de dizer nada. Se disse, ninguém escutou. Assim se sucedem as ironias da história. Sic semper.

    Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902

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