Até onde vai a liberdade de dizer o que se pensa ou pensar o que se diz?
No final desse post tem uma pequena provocação a respeito.
Pablo Hásel, nome artístico do obscuro rapper catalão Pablo Rivadulla Duró, está cumprindo uma sentença de nove meses de cadeia, desabilitação de rede social por seis meses e 30 mil euros de multa por apologia ao terrorismo e injúrias a membros da monarquia e à polícia. As ofensas foram feitas por tuítes e letras de música.
O cantor é tão à esquerda que ressuscitou, com fins laudatórios, grupos terroristas que nem existem mais, como o Grapo e a ETA, ambos responsáveis por centenas de mortes e atentados brutais, tendo estendido suas atividades até depois da redemocratização da Espanha.
Referindo-se a políticos pelos quais tem antipatia, ele disse, entre outras preciosidades, que um merecia que seu carro fosse explodido; outro, levar uma picaretada na cabeça e mais um não deveria receber comiseração por ter sofrido um tiro na nuca.
E as irmãs do rei Felipe, tratadas na Espanha pela denominação de infantas, assim deveriam receber um castigo definitivo: “Pena de morte para as infantas patéticas, por gastar nossa grana em cirurgias estéticas”.
Outras pérolas:
“O mafioso de m••••• do rei dando lições enquanto fala num palácio, milionário à custa da miséria dos outros”.
“50 policiais feridos? Estes mercenários de m**** mordem a língua recebendo hóstias e dizem que estão feridos”.
“A polícia assassina 15 imigrantes e são santinhos. O povo se defende de sua brutalidade e somos ‘violentos terroristas, chusma etc’”.
Já deu para perceber qual é o tom.
Mas vale destacar mais um tuíte: “A polícia assassina com total impunidade, mas Pablo Iglesias diz que nos protegem”.
Pablo Iglesias é o líder do Unidas Podemos, um partido que se assemelha, ideologicamente, ao PSOL, e hoje participa da coalização do governo de esquerda. Ser criticado por Hásel é uma ironia daquelas.
Antes da prisão do rapper, mais de 200 artistas e intelectuais firmaram um abaixo assinado em defesa da livre manifestação de pensamento, incluindo o diretor Pedro Almodóvar e o ator Javier Bardem.
Embora a Espanha seja uma democracia impecável, no padrão Europa Ocidental, o manifesto denuncia “a perseguição a rappers, tuiteiros, jornalistas, bem como a outros representantes da cultura e da arte, por tentarem exercer seu direito à liberdade de expressão, tornou-se uma constante”.
“Agora, com a prisão de Pablo Hasél, o Estado espanhol equipara-se a países como a Turquia ou o Marrocos, que também contam com vários artistas presos por denunciarem abusos cometidos pelo Estado”.
“Estamos conscientes de que se deixarmos que Pablo seja preso, amanhã podem vir atrás de qualquer um de nós, até conseguir silenciar qualquer murmúrio dissidente”.
Obviamente é um exagero, mas deixa o governo de esquerda em posição altamente desconfortável.
No início dos protestos, o governo se movimentou para promover a abolição da lei referente a injúrias contra a monarquia. À medida em que as manifestações avançaram para o quebra-quebra, foi sendo constrangido a condená-las.
Os protestos envolvem, inevitavelmente, a mais espinhosa das questões da Espanha, o separatismo da Catalunha, onde as manifestações emendam várias bandeiras e, quando parecem arrefecer, voltam a incendiar as ruas.
É possível que exista também um elemento ligado aos efeitos deletérios da pandemia, especialmente negativos para as massas de jovens que já não tinham empregos ou perderam colocações mais precárias. O desemprego entre jovens hoje voltou para a brutal faixa dos 40%.
Por mais agressivas, e notavelmente pouco artísticas, que sejam as músicas e as tuitadas de Hásel, podem ou devem ser punidas criminalmente?
Nos Estados Unidos, essa discussão nem existiria. Em países menos sistemicamente dispostos a pagar o preço da liberdade – nem pensar, por exemplo, em liberar a apologia do nazismo, como é possível em terras americanas -, existe uma tendência maior a aceitar que há limites que não podem ser transpostos.
É claro que sempre tendemos a achar que o “o lado deles”, o dos antagonistas ideológicos, merece ser punido e que o “nosso” deve ser protegido pelas garantias à livre expressão das ideias.
Teste rápido: basta substituir o nome do rapper espanhol pelo do deputado brasileiro atualmente preso por barbaridades variadas no campo das ideias para saber quem segura até o fim a bandeira da liberdade de expressão.
No caso de Pablo Hásel, ele pode alegar que tinha razão nas críticas brutais ao rei aposentado Juan Carlos II, cujas transgressões no campo dos recebimentos indevidos e da lavagem de dinheiro estão sendo investigadas.
E no outro caso?