Há muitos enganos, exageros e obsessões ideológicas. Mas não é ruim que, diante do dilúvio apocalíptico que assola o Rio Grande do Sul, haja um debate sobre o papel dos cidadãos e do Estado. É um debate permanente: qual a melhor forma para as sociedades se organizarem e que tipo de governo produz mais resultados positivos do que negativos. Coincidentemente, o debate explodiu num momento em que o pensamento original de Ludwig von Mises, o maior pregador da contenção do Estado, foi ressuscitado de uma maneira nada menos que espetacular. Pouco antes do cataclismo gaúcho, o lutador de MMA brasiliense Renato Moicano disparou o já antológico discurso no ringue que mantém os libertários até hoje em estado de êxtase. “Se quiserem salvar seu país, leiam Ludwig von Mises e as ‘seis lições’ da escola econômica austríaca”, proclamou aos americanos, derrubando os queixos de blogueiros e podcasters mundo afora (“É indescritivelmente grandioso. Boxeadores letais se tornaram pensadores econômicos profundos”, aplaudiu Jordan Peterson, comovendo seu leitor e admirador brasiliense.)
As “seis lições” sintetizam de forma acessível o pensamento do economista que, com seu discípulo Friedrich Hayek, popularizou a escola de Viena. Algumas de suas ideias parecem ingênuas — antes de nos lembrarmos que foi ele o autor original de conceitos que circulam até hoje como um antídoto ao domínio absoluto do pensamento de esquerda. Defender o capitalismo diante da ideia oposta, a de que ele está na origem de todo mal, é uma missão que Mises encarou com realismo. Não prega um futuro perfeito, um novo homem, a construção de um paradisíaco mundo sem injustiças e utopias que tanto fascínio causam. “O sistema capitalista pode ser — e de fato é — mal-usado por alguns. É certamente possível fazer coisas que não deveriam ser feitas”, assumiu.
“Ele não prega um futuro perfeito, um novo homem, a construção de um paradisíaco mundo sem injustiças”
“Liberdade significa liberdade para errar”, argumenta numa das tiradas das “seis lições”, referindo-se à experiência intervencionista que aconteceu no coração capitalista da América, quando a abstinência alcoólica obrigatória comandada pelo Estado chegou a ser consagrada na Constituição (durou de 1920 a 1933). “Podemos ser críticos com relação ao modo como nossos concidadãos gastam seu dinheiro ou vivem sua vida. Podemos considerar o que fazem absolutamente insensato e mau.” Mas o peso do Estado não deve ser jogado sobre os malcomportados — dentro da lei, evidentemente.
“A liberdade possível numa economia de mercado não é a liberdade perfeita num sentido metafísico. Mas a liberdade perfeita não existe. É só no âmbito da sociedade que a liberdade tem algum significado”, preconizou o austríaco em 1959. Numa curiosa conexão com a Argentina atual, ele fez o seminário a convite do economista Alberto Benegas Lynch, um dos inspiradores libertários de Milei — seu filho e seu neto estão alinhados com o presidente que propõe um modelo radicalmente austríaco para salvar o país de seus inúmeros males. Nem que seja para ter ataques de raiva, os defensores das ideias contrárias às de Mises deveriam relê-lo. Ou passar pela experiência transformacional, para alguns, de lê-lo pela primeira vez, sintetizada pelo eletrizante entusiasmo do autodidata Renato Moicano. Qualquer pensador capaz de provocar isso merece uma chance.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894