Parecia uma dança ensaiada no gelo, embora os participantes, Vladimir Putin e Sergei Lavrov, não tenham o vigor nem o viço da juventude dos patinadores russos.
Ainda existe chance de ter um acordo que atenda às demandas russas ou as negociações são um labirinto tortuoso, perguntou Putin a seu chanceler.
“Como ministro das Relações Exteriores, devo dizer que sempre existem chances”, respondeu um compenetrado Lavrov.
A conversa nada espontânea, numa daquelas mesas intermináveis que parecem ser artigo comum no Kremlin, foi televisionada dentro da tática do morde e assopra.
É claro que o recado tinha por objetivo abrir uma pequena fresta de esperança de solução negociada para os Estados Unidos e a Europa, mas também serviu para alimentar a máquina de propaganda interna que criou um universo paralelo onde a Rússia é vítima da Otan – sigla que virou sinônimo do mal – e a Ucrânia planeja perpetrar atrocidades contra a região separatista na fronteira russa.
Com seu estilo ferino, na beira da brutalidade, Lavrov é a imagem, no exterior, da propaganda russa. No inglês fluente que o tornou figura comum nas televisões ocidentais desde a época em que era o embaixador na ONU, o chanceler defende a causa russa talvez como nenhuma outra personalidade da história recente.
Lavrov, filho de pai armênio e mãe russa, capaz de massacrar interlocutores menos escolados, como fez na semana passada com Liz Truss, a ministra britânica das Relações Exteriores, comparando a conversa com ela a “surdos falando com cegos”.
Inverter a realidade é a prática dominante nos meios de comunicação, não só os oficiais – Sputnik, RT, Tass – como nos oficiosos, às vezes de forma brilhante, às vezes com métodos e termos inacreditáveis.
“A Rússia não precisa de um mundo sem a Rússia. Nesse caso, não apenas a América vai virar poeira radiativa, como também a Europa”, disse recentemente o apresentador de um programa de televisão, Dmitri Kiseliov. Na versão apresentada por ele, a crise da Ucrânia foi arquitetada pela Otan para ameaçar a Rússia.
Sem contar que a Ucrânia, ajudada por “mercenários poloneses”, está se preparando para atacar Donbas – a faixa fronteiriça onde a Rússia promoveu a proclamação de uma república separatista em 2014.
Na época, a mídia russa deu grande destaque ao caso do “menino crucificado”, uma criança de três anos morta por soldados ucranianos – histórica totalmente inventada, rememorada pela BBC.
“Sugerir que a Ucrânia é um país alinhado com o nazismo é um tema regular na cobertura da mídia russa”, anotou circunspectamente a BBC.
A acusação tem raízes na sofrida e complexa história da Ucrânia. Como aconteceu em outros satélites soviéticos, a invasão nazista foi vista, inicialmente, como uma libertação entre parte dos ucranianos. Outros nem tinham como reagir e, outros ainda, somaram-se à luta contra as duas potências.
Ucranianos de todas as simpatias foram cruelmente punidos por Stalin com deportações em massa, entre outras atrocidades.
Hoje, partidos ultranacionalistas que podem descambar para o fascismo não conseguiram passar dos 5% dos votos necessários para ter representação no Parlamento ucraniano.
Outra forma de manipulação é através dos exércitos cibernéticos que entram nas seções de comentários como se fossem leitores comuns, defendendo as posições russas.
Segundo o Mythos Lab, que segue esse tipo de intervenção, a quantidade de falsos leitores reenviados por contas da máquina de propaganda aumentou 213 vezes desde novembro, quando começou a concentração de tropas em volta da Ucrânia.
A campanha atual já foi chamada de “guerra do TikTok” porque a movimentação de soldados e material bélico é imediatamente retransmitida, o que dificulta os desmentidos frequentes como em 2014.
A ordem unida é apresentar o lobo como se fosse o cordeiro e vice-versa. Os influenciadores oficiais são muitos e profissionais. Incrivelmente, a informação manipulada é repetida tanto à esquerda quanto à direita.
Vitória indiscutível de uma formidável máquina de propaganda especializada há muito tempo nas artes da “dezinformatsia”.
“Já vivemos em tempos piores”, costuma dizer Sergei Lavrov sobre as sanções econômicas com que americanos e europeus procuram influenciar a posição russa.
Mas nunca tempos em que a guerra da informação fosse tão disputada.