Muitas pessoas gostariam de ser, como dizem os americanos, uma mosca na parede, uma testemunha imperceptível dos bastidores do poder, onde seus detentores mostram realmente o que pensam. Bob Woodward, inevitavelmente associado ao passado distante no caso Watergate, muitas vezes faz o papel dessa mosca. No seu último livro, intitulado Guerra, ele revela detalhes sobre o comportamento de Joe Biden e seus interlocutores, ou antagonistas, nas guerras da Ucrânia e do Oriente Médio.
Todo o trabalho de Woodward, com trechos antecipados por vários meios americanos, é documentado ou tem fontes de primeira linha. O próprio jornalista tem pavor a Donald Trump e mostra líderes do atual governo, de Joe Biden, em situações que os favorecem. Apesar do partidarismo, vale a pena resumir algumas de suas revelações.
A imprensa americana deu grande destaque para os telefonemas – calculados em sete – entre Trump e Vladimir Putin, depois que o ex-presidente deixou a Casa Branca.
O fascínio de Trump por Putin é um dos maiores mistérios da política, mas Woodward mostra em seu livro que o inverso também é verdadeiro. Putin pede a Trump que não revele que enviou aparelhos para testes instantâneos de Covid que, na época, só existiam nos Estados Unidos.
“Não conte para ninguém”, pede Putin, segundo o diálogo reconstituído para Woodward por um assessor de identidade não revelada.
“Não ligo a mínima”, responde Trump.
“Não, não, é por sua causa. As pessoas vão ficar com raiva de você. Não ligam para mim”, agrada Putin.
CANCELAR O PASSE
Joe Biden, ao contrário da amenidade indicada na relação entre o tirano russo e Trump, chama Putin de um “filho da ****” que é a própria encarnação do mal.
Revelação relevante: Biden culpou Barack Obama pela audácia russa, ao ter uma reação pífia à anexação da Crimeia, a antessala da invasão que ainda se perpetua. Seria como se tivesse dado um passo livre a Putin. “Vou cancelar esse passe”, diz Biden, segundo reproduz Woodward.
Numa demonstração dos limites do poder, ele avisa Volodymyr Zelensky que as melhores fontes da CIA – inclusive a mais valorizada pelos serviços de inteligência, um colaborador dentro do próprio Kremlin – haviam passado em detalhe todos os planos de Putin para invadir a Ucrânia.
Ao receber a informação do diretor da CIA, Bill Burns, Biden reagiu: “Santo Deus! Agora vamos ter que lidar com a Rússia engolindo a Ucrânia?”.
Biden passou a informação, mas Zelensky não acreditou, o que explica suas várias declarações dizendo que não haveria uma invasão, mesmo quando os tanques russos já estavam a caminho.
Teria o presidente ucraniano sido enganado por seus próprios serviços de inteligência? Ou desconfiaria dos americanos?
DEMONSTRAÇÃO DE PODER
Mesmo com o monumental engano, a Ucrânia resistiu formidavelmente à invasão, provocando tal ira de Putin que, segundo as fontes de Woodward, o risco de que usasse armas nucleares saltou de 5% para 50%, um perigo de proporções apocalípticas para o mundo. Biden acionou todos os canais americanos para avisar os russos “o que vamos fazer” caso a situação desembocasse em semelhante catástrofe.
Woodward reconstitui um diálogo formidável entre o secretário da Defesa, Lloyd Austin, e o então ministro da Defesa da Rússia, Serguei Shoigu.
“Todas as restrições com as quais estamos operando na Ucrânia seriam reconsideradas. Isso isolaria a Rússia no cenário mundial a um grau que os russos não entendem completamente”, disse Austin.
“Não gosto de ser ameaçado”, respondeu Shoigu.
“Senhor ministro, eu sou o líder das forças armadas mais poderosas da história do mundo. Não faço ameaças”.
Nada como uma demonstração de poder da pesada numa hora como essa.
DE ARREPIAR O CABELO
Dois dias depois, Shoigu ainda tentou dar uma de russo esperto e acusar a Ucrânia de planejar o uso de uma “arma suja””, o que justificaria qualquer reação absurda do Kremlin.
“Não acreditamos em vocês. Não estamos vendo nenhum indício disso e o mundo vai perceber a tramoia. Não façam isso”.
Segundo um integrante do Pentágono na época, Colin Kahl, foi “o momento que mais arrepiou os cabelos nessa guerra”.
Nem sempre Biden e seus colaboradores mostraram visão semelhante. Com Benjamin Netanyahu, o presidente americano foi desdenhoso ao dizer: “Bibi, você não tem uma estratégia”.
Pode ser verdade, no cômputo final, mas no caso específico Biden estava errado: queria convencer Netanyahu a não mandar as Forças de Defesa de Israel entrar em Rafah. Isso não só aconteceu como ajudou a enfraquecer ainda mais o Hamas em Gaza.
“ESTADO DELINQUENTE”
“Ele é um mentiroso”, clama Biden sobre Bibi, cercando as frases com palavrões fortes. “De 19 pessoas que trabalham com ele, 18 são mentirosas”, reclama ele, talvez sem perceber a tática israelense de ir fazendo o que a cúpula política e militar achava melhor e dar uma enrolada no presidente americano.
Cada vez que Israel aumentava a aposta, como o ataque que estreou os sucessivos e letais bombardeios contra comandantes do Hezbollah no Líbano, Biden estrilava. “A percepção de Israel é de que vocês são um estado delinquente”, argumentou.
Talvez a cúpula israelense já soubesse disso e estivesse menos interessada em percepção, já por água abaixo de qualquer maneira, e mais na decapitação da liderança do Hezbollah.
O excesso de detalhes pode sufocar a narrativa de Woodward num clima maçante, mas há revelações imperdíveis.
Quando o senador republicano Lindsay Graham visitou o governante de fato da Arábia Saudita, o príncipe Mohammed Bin Salman, sugeriu que ligassem para Trump. MBS chamou um assessor para trazer uma bolsa com cinquenta celulares. Cada um com o nome de um líder específico. Usaram o que tinha o rótulo Trump, especialmente dedicado ao ex-presidente.
“PRECISO E LETAL”
Outra manifestação dos limites do poder: Biden começou seu governo praticamente rompendo com o príncipe saudita, por causa do assassinato do jornalista e operador político Jamal Khasoggi. Terminou visitando o país para tratar do assunto vital no qual a Arábia Saudita é uma superpotência: petróleo.
A Arábia Saudita também tem um papel fundamental num possível acordo para o Oriente Médio que termine a guerra com a assinatura de um tratado de reconhecimento de Israel, a reconstrução de Gaza e alguma coisa, que ninguém sabe direito como é, para neutralizar influências malignas como a do Hamas e do Hezbollah, dando aos palestinos uma alternativa na qual valha a pena apostar, em lugar da violência permanente.
Talvez não dê tempo para que isso aconteça no governo Biden.
Ontem ele retomou o diálogo direto com Netanyahu, interrompido desde agosto. Os Estados Unidos querem desescalar a situação com o Irã, enquanto todo mundo espera o ataque de retaliação, “letal, preciso e, mais importante, surpreendente”, nas palavras do ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant.
PODER SUAVE
Não deixa de ser irônico: os Estados Unidos, cuja destruição o regime iraniano pede diariamente, são a única força no mundo atualmente a “segurar” Israel. Claro que existe o interesse próprio: um ataque que levasse o petróleo a mais de 100 dólares o barril seria um choque para todas as economias e talvez desse a vitória a Trump.
Foi justamente a hipótese dessa vitória que provocou um desenrolar final no livro no qual Bob Woodward mostra sinais adicionais de que a pessoa mais influente da atual administração é o discretíssimo Antony Blinken, não somente secretário de Estado como o mais próximo integrante da equipe de Biden.
Foi Blinken quem bateu o martelo e, elegantemente, durante um almoço na Casa Branca, conduziu Biden a concluir pela necessidade de renunciar à candidatura pela reeleição. A alternativa seria deixar Trump vencer.
O poder também pode ser exercido suavemente.